29.12.01

Amores Irreais III: Cartas

Ela não era muito de escrever cartas. Escrever - qualquer coisa, por mais insignificante - a incomodava. Seus amigos recebiam livros sem dedicatórias e cartões com assinaturas solitárias. Detestava a permanência das palavras.

Tudo mudou quando ele desapareceu. Saiu um dia e não voltou, inexplicavelmente. A ausência foi preenchida por uma vontade enorme de escrever para ele. As cartas mentiam uma vida roubada.

Escrevia por horas, até suas mãos não agüentarem, quando passava a adicionar acessórios de todo o tipo. As páginas - sempre muitas - falavam tão pouco que poderiam ser simples exercícios de estilo. Ela mesma pensava assim ao postá-las para o distante endereço inexistente.

Continuou por centenas de semanas, com o resultado esperado. Cansou, desistiu e não foi ao correio. "Sinto sua falta", dizia o telegrama.

26.12.01

Em 26.12.01

Amores Mortos III: Espaços Vazios

Ela acordou por conta do sol, já reclamando da cortina aberta. Sem o som do banho ou o cheiro do café, se lembrou. O peso da cama vazia a esmagou: ela deixara a cortina aberta.

Um telefonema não atentido impediu que dormisse. Ficou remoendo tudo o que passara enquanto procurava o leite na geladeira vazia. Ligou a tv, sentou e tentou se convencer que gostava do espaço extra na cama.

Seus dedos começavam repetidamente número dele, sendo impedidos sempre antes de o completar. Passaria uma tarde com seus discos de jazz. O sax ao fundo do pôr-do-sol a convencia que não passaria por aquilo de novo.

Foi ao cinema, sem pensar no título. Não dividiu a pipoca ou o espaço até que se encher do filme e da cadeira vazia a seu lado. Engoliu as lágrimas, só aumentando a vontade de chorar.

As ruas vazias a deixaram com um frio insuportável. Correu para casa e o frio cresceu ao não encontrá-lo. Sentou na cama e decidiu uma vingança: contaria a ele como adora o espaço extra na cama.

22.12.01

Amores Sonhados III: Inversão

Ela não podia - mesmo que do modo mais tênue - existir. Suas asas, cabelos de prata, tom de pele e olhos negros sem pupilas eram uma total impossibilidade. Seu povo partira dali há muito, mesmo assim ela esperava toda noite por seu amado.

Ele, mortal e entediante, fugia dela em seus sonhos. Tudo nela o perturbava, principalmente os risos quase inaudíveis que o monstro dava enquanto voava ao seu redor. Se desesperava com a insistência das torturas dela naquela terra estranha.

Tentou, com medo, parar de dormir, mas isso se mostrou impossível. Passou por toda uma farmacopéia que só adicionava uma ressaca enorme ao acordar. Estava quase conformado em ser eternamente assombrado quando encontrou um livro sobre como controlar seus sonhos.

Ela se surpreendeu ao ver que ela não fugia, mostrando uma hesitação típica de quem tem algo a dizer. Ao ouvir as palavras equivocadas, não pôde deixar de chorar. Ou de notar outro sonhador nas bordas daquele fim.

19.12.01

Amores Perfeitos II: Tristezas

Estavam desesperados, ou naquela situação que vem logo depois do desespero. Era o momento de tentar algum tipo de recomeço. Não que realmente desejassem.

Ela foi, mais ou menos, abandonada sem explicações. Ele, traído e as poucas explicações nada convincentes. Estupefatos e tristes, vagavam procurando algo que os distraísse.

Já se conheciam antes - não se gostavam muito. Mas o espelho de sua tristeza no outro os atraia. Cada um queria curar o outro, na tentativa de curar a si.

Se viram - de repente - nos braços um do outro. Antes do primeiro beijo disseram, ao mesmo tempo, "nunca daremos certo". Era tudo que precisavam ouvir.

15.12.01

Amores Complexos II: Atritos

Era a terceira briga pública na semana. Claro que a semana provocara, com jantares e festas demais. Muitos caroços de azeitonas para se livrarem, censurarem e se lembrarem da falta de consideração, da humilhação e do "você não me ama mais!! Nunca amou!".
Não era verdade. Eles se amavam mais do que a maioria daqueles casais de pombinhos cheios de "môs" e "benhês". Suas agressões - e tolerância em suportá-las - eram a maior prova disso.

Estranhavam quando não se agrediam. Torciam para que os gritos começassem e quebrassem o isolamento que sentiam. Aumentavam a intensidade - dos gritos e dos insultos - conforme aumentava o desespero de que no outro não existisse mais amor.

Tentaram se salvar com um romantismo que não funcionava para eles. Brigaram ainda no jantar, algo sobre a cor das velas não combinar com a toalha. Terminaram satisfeitos e nus, brigando no chão.

12.12.01

Amores Fugidios III: Trem

Foi a voz que chamou sua atenção para o vestido florido e os cabelos avermelhados sem rosto no grupo de meninas. Pensou em se aproximar, mas a estação vazia não oferecia cobertura. Decidiu que haveria tempo no trem, e foi tomar um café.

Ela entrara no trem antes dele, protegida pelo grupo. Amaldiçoou a sonolência da caixa ao não encontrar lugar próximo a onde imaginava ela estaria. Ignorou a paisagem que saíra de casa para ver e ficou passeando pelo trem, tentando vê-la por inteiro.

Como que por mágica, seu rosto se escondia dele. Voltou ao seu lugar, tentando construir um rosto para os pedaços de queixo e nariz que viu, sem sucesso. Decidiu deixar de rodeios e ir - mais que ver - falar com aquele rosto.

Tocou timidamente na alça infantil do vestido, perto de um túnel. A escuridão chegou antes que ela se virasse, enquanto ele refletia sobre o papel ridículo que estava fazendo. Ela ainda pensa no leve toque fugidio sobre seu ombro no trem.

8.12.01

Amores Irreais II: Asilo

Sabia que tinha um amor longe, ou achava que tinha. Tinha dúvidas quanto a realidade dos cabelos e sorriso brilhantes dela. Talvez as pílulas coloridas tivessem algo a ver com a nuvem em sua cabeça.

Ela vinha de vez em quando, talvez com uma certa regularidade. A cada vez estava diferente, cores diferente, achava. Ele não se lembrava bem quando ela vinha.

Ela falava algo sobre um pai falso morto. Ele quase se lembrava disso e de uma casa numa praia quente. Ele ficava esperando por ela, mesmo sem ter certeza sobre quem era ela.

Ela contou algo sobre um primeiro dia na escola, sem choro nem nada. De algum modo ele sabia que isso era importante. Mas menos que o sorriso da cor das paredes macias.

Em 08.12.01

5.12.01

Amores Mortos II: Mapa

Não podia mais andar pela cidade depois dela. Pelo menos não sem lembrar a cada poucos passos, o que causava quase efeito pior que de uma proibição. Tudo em que pousava os olhos - de algum modo - fazia parte da história dos dois.

Num breve passeio de ônibus, encontrou diversos lugares e ânimos. Da clínica veterinária em que segurou o gato dela dentro de uma bacia à coffee shop onde costumavam "tomar café" às duas da tarde aos domingos. Incomodou particularmente - por conta de uma avenida deslocada - o lugar onde, entre bebidinhas e vendedores chatos, ela elogiou seu beijo.

Diante de tantos lugares - quase todos os lugares - resolveu ficar em casa. Mas sofás, quartos, salas, banheiros, cozinhas e todo o resto o lembravam de uma história, um momento. Queria fugir, mas não sabia para onde.

Mas o pior era pensar no mapa dela. Em como as nódoas novas se sobrepunham às coisas que escreveram juntos. No medo se ter seus grifos esquecidos.

1.12.01

Amores Perfeitos I: Vácuo

Ele era de um carisma extremo. Frases espirituosas e as piadas certas pulavam de sua boca quase sem pensar. Todos, até os invejosos, sabiam que era impossível não gostar dele.

Seus amigos se intrigavam dele não ter uma namorada. Era só escolher uma das solteiras disponíveis e seus talentos naturais cuidariam do resto. Alguns se interrogavam se ele não seria gay, mas um ou dois corações partidos entre os amigos diziam que não.

Ele sabia - e se envergonhava - da verdade. Tinha medo de ser ofuscado pela mulher que o apaixonaria. Procurava alguém sem as qualidades que admirava, mas que ainda assim guardasse algum interesse.

Encontrou sua felicidade em cabelos descoloridos, horas de malhação, calorias contadas e silicone. Ela era pouco mais que um objeto. E ele a amava justamente por isso.

28.11.01

Amores Sonhados II: Divisões

Ela se apaixonava fácil. Não a cada dois passos, onde só encontrava interesses. Mas com uma freqüência e intensidade que a incomodavam mais que a seu namorado.

Não que ele soubesse das paixões além dos momentos em que ela terminava tudo, para sempre, mas percebia uma ameaça constante além do horizonte. A cada separação, encolhia os ombros resignado, sabendo que ela retornaria. Afinal, era o homem da vida dela.

Ela vivia se dividindo entre os jogos e excitações de suas novidades e seu desejo de permanência e segurança. Mas a divisão não durava muito tempo. Afinal, que tipo de segurança seria uma para qual não se pode voltar?

Numa de suas distrações, descobriu como poderia ter as duas coisas. Sem ter que escolher, sem se privar. Sonharia com suas paixões todas as noites, corrigindo os momentos de que se arrependia.

Se sentia feliz e completa em seu sucesso. Seus sonhos a permitiam viver tudo. Até que o acúmulo de um terceiro amor destruiu a perfeição de sua simultaneidade.

24.11.01

Amores Fugidios II: Ônibus

Se arrependia de não ter nada para ler no arrastar do engarrafamento. Costumava enjoar nos passeios de ônibus, mas não havia movimento suficiente nem para isso. E o maldito discman esgotou as pilhas antes de terminar uma música.

Ele fora percebido no instante que sentara, mais pelo livro na mão - um dos favoritos dela - que por sua aparência. Os olhos indecisos ricocheteavam entre ele e o livro. Procurava alguma reação, mas era um daqueles livros de efeitos perniciosos e cumulativos.

Decidira que queria ser apanhada, mas mesmo assim desviava os olhos a cada possibilidade de contato. Faltava o que dizer, a palavra que iniciaria a conversa. Ele disse a primeira palavra, totalmente incongruente, ao pegar os olhos dela nos seus.

Ele deu um sorriso estrategicamente sem graça quando ela explicou o significado. A partir daí a conversa fluiu fácil - e o trânsito rápido demais. Ela ainda se arrepende de ter não ter retribuído o pedido de telefone feito por ele.

21.11.01

Amores Complexos I: Xadrez

Jogavam xadrez à distância, um de cada lado do oceano. Suas cartas continham, entre confissões de erros e declarações de saudades, suas jogadas. Nem sempre as melhores, fato.

O xadrez os colocara juntos, ainda nos tempos de escola. Adversários bons eram difíceis de serem encontrados. Adversários agradáveis ainda mais.

Algo mais que uma amizade evoluiu daí. Escondiam isso um do outro da mesma forma óbvia com que escondiam as coisas no tabuleiro. Ao fim de um jogo longo, não havia mais nada a esconder.

Marcaram um último jogo, antes de partirem. O interromperam no meio, forma óbvia de manter contato. Nas cartas, os movimentos nunca importavam.

17.11.01

Amores Irreais I: Planos

Ela era, sem a mínima sombra de dúvida, a mulher mais perfeita que ele já vira. Não, pensava ele, a coisa mais perfeita que ele já vira ou sobre a qual tinha conhecimento. Ele não cansava de olhá-la furtivamente, para não levantar suspeitas.
Tudo nela era perfeito. A cor e textura dos cabelos e pele, o formato e rubor dos lábios e rosto. Era sua mulher ideal, mesmo que só tivesse seis anos.

Seu fascínio - e fantasias - por ela o perturbavam profundamente. Nunca se sentira atraído desse modo por nenhuma criança. Acordava à beira das lágrimas cada vez que sonhava com a garotinha no fim da rua.

O que o perturbava mais que tudo eram seus cálculos. Faltavam dez anos até a data que marcara para cortejá-la como achava apropriado. Nunca algo tão planejado pareceria tão repentino.

14.11.01

Amores Mortos I: Enterro

Ele morrera de repente, mas não tão rápido a ponto do pior ser a surpresa. Dores de cabeça, um tumor enorme que esperou pouco para estourar. Houve o tempo para o desespero em beber tudo que tinham a se oferecer.

Ela via o tempo como insuficiente. Principalmente agora, enquanto assistia o rosto lindo e branco entre as flores amarelas. Ele sempre ficou melhor sem óculos, mesmo que teimasse em não usar lentes.

Ele desejava ser cremado, disse várias vezes que se apavorava com a idéia dos mortos sob a terra. Ela não conseguiu respeitar isso. Não poderia destruí-lo irreversívelmente desse modo.

Pensava em desenterrá-lo breve (como pensara em comer suas cinzas). Sabia que não faria isso. Mesmo assim a pá no carro a confortava.

10.11.01

Amores Sonhados I: Encanto

Sentia algo importante escorrer entre seus dedos ao acordar. Ignorava se era um sonho ou uma lembrança. Percorreu sua memória durante todo o dia, mas as bagatelas do cotidiano o resgatavam com freqüência.

Na noite, corria por imagens sem rumo, percebendo que - em momentos que não conseguia definir - a película entre seu sonho e sua memória enfraquecia. Agora, com sono, acreditava que fora um sonho que causara sua inquietude agridoce.

Teve a certeza finalmente ao adormecer. Sonhou, enquanto ainda não adormecido propriamente, o mesmo sonho. Breve, fugidio, real.

Acordou assustado, lembrando-se das mãos improváveis de um perene e difícil fascínio deslizando por seus cabelos. Acreditava ser uma memória. No calor do quarto escuro, repetia o nome dela como um encanto.
Amores Fugidios I: Pizza

Ela sempre abria a porta para ele e a calabresa de todo domingo. Sempre bonita - arrumada demais para uma noite de domingo - e apressada para sair. Ele sempre se perguntava onde ela iria.

Ele tinha certeza que ela nunca comeu das pizzas que ele trouxe. Elas normalmente pulavam para crianças falando "mamãe". Recém-divorciada, sempre pagava em dinheiro: nada de nomes.

Ela era só mais uma cliente bonita em que pensar. Até que - chegando em dez, não quinze, minutos - ela abriu a porta escovando os dentes. E - sem idéia do motivo - surge uma paixão sem sentido.

Ele imaginava os olhos constrangidos dela ao passar pela rua. A placa "vende-se" quase o derruba. A lista telefônica não é de nenhuma ajuda.

9.11.01

Ninguém tem passado
Amor real não guarda pó

Escrevi isso com palavras coladas em ímãs. Acho que se procurasse mais palavras, saia algo melhor. Mas o exercício é muito interessante.

30.10.01

Senryu: Sorriso em rua cheia
em 28.03.00

A menina, sem notar,
Vira um pescoço,
Despertando meu sorriso.

21.10.01

Senryu no trem
em 26.12.99

Num instante de escuridão,
Um rápido beijo
Roubado de um rosto em branco

17.10.01

Hai-kai na janela I
em 17.10.01

Da minha janela
Não vejo quase que nada:
Cortina fechada

(Fiz esse para o Janelas do Mundo, projeto do professor André Lemos)

16.10.01

Dos Diários de Ulisses VII
em 14.02.01

Há muito não conto com a gentileza de Apolo. Sabia que seria
desprezado depois de Tróia - mas nunca imaginei que o Sol sairia
de seu caminho para interferir em meus sonhos. O deus me
amaldiçoou com a benção da profecia perfeita.

Todos os presságios presentes e passados passam por mim. Há
mil mundos em meus sonhos, mais idéias do que posso contar.
Mais vidas do que posso viver.

E contra sonhos não há luta.

28.9.01

Na Madrugada
em 28.09.01

"Ela tinha razão."

Era só o que ele conseguia pensar enquanto escutava o disco. Agora, enquanto tentava ouvi-lo apenas como algo relaxante para que pudesse dormir, não conseguia evitar a opressão estocada ali.

"Não ouço música quando estou triste. Deito e choro. Já perdi vários discos assim, ouvindo música nas horas erradas. Quando paro para pensar, acho que fico mais triste pelos discos que pelos motivos originais das tristezas."

Ele se via obrigado a concordar - apesar da veemência com que discordou originalmente. E ter que reconhecer que ela tinha razão só piorava a situação: a recordação da conversa e de estar lá lembravam outros momentos, outros erros.

Chegou a uma conclusão. Nada de Folk para dormir: Ambient.

22.9.01

En Chassant l'Idée
em 22.09.01

Passeava pelo conto com sofreguidão, narrando sua própria leitura. Sabia que havia encontrado uma idéia ali. E - como acontecia toda semana - a perdeu ali também, algumas palavras mais pra lá, um pouco depois da esquina.

Entrada em cada frase, cada palavra, como deve-se percorrer os textos divinatórios. Cada palavra se oferecia em várias direções, mas nunca como ele queria. Fingiu até abraçar uma das novas idéias que encontrou, esperando que a outra aparecesse na porta e pedisse explicações.

Nada.

Desistiu, quase de verdade. Aquela idéia era só mais uma sentada num café: uma possibilidade que não resistiria ao tempo.

14.9.01

Uma Alternativa Datada
em 28.10.99

Conversas em mezaninos e varandas. O tilintar de taças. Olhares furtivos para o horizonte e não tão furtivos por entre decotes. Relógios checados a cada minuto, em busca de mais tempo. Inexiste mais tempo. Uma resignação quase alegre se mistura no ar com a música e os muitos perfumes.

Tudo começa a se definir no horizonte, tão impossível de impedir ou adiar quanto de não se maravilhar. Fascínio e civilidade. Nenhuma descrença ou desespero. Os últimos brindes, beijos e palavras. A última música, a lembrança de algo que deveria ter
sido feito...

Uma última olhada no relógio confirma: tudo bem a tempo.

31.8.01

Prozac Pulp
em 26.10.99

É noite na Cidade. Uma noite quente, daquelas em que ter ou não ter um ventilador não faz a mínima diferença. E mesmo assim não consigo me desfazer do chapéu e do sobretudo. Maldito Bogart. Tirá-los me deixa tão vazio e desprotegido...

E não posso parecer vazio e desprotegido na minha linha de trabalho. Principalmente depois da demissão. Fiz o possível para ser demitido, os direitos trabalhistas compensavam. (Se meu pai me visse agora, comprando meus mentolados com o dinheiro do contribuinte...) Meu analista acha que foi uma péssima jogada falar sobre os Arcontes. Mas o que posso fazer. É a mais pura verdade. Ou um dos dois aparentes lados da Moebius do real.

Nada me entretém nessa noite. Nem o rádio que toca Blue Moon, nem brincar com meu zippo, nem as revistas pornográficas. Por que diabos as comprei? Não consigo me livrar da fascinação mórbida que me tomou depois de ver o que os servos dos Arcontes tinham que fazer com as garotas antes de alimentar o Filho da Lua. Ainda posso ver a imagem atrás dos meus olhos. Toda pornografia precisa de degradação, mas agora vejo tudo degradado. (Será só desejo essa inquietação?)

Não agüento mais ficar acordado nesse escritório infernal. É estranho ver o olho na porta. Principalmente depois de anos correndo na frente de policiais e de meus hoje colegas para perguntar o que esperavam ver já tendo as fotos no filme. Eu devia ter corrido menos naquele dia. E devia ter jogado o filme fora. Não que faça diferença para Eles que eu saiba ou não. Mas faz para mim. Eu gostaria de poder ignorar o que tenho em mãos.

Me pego mais uma vez perto da porta, olhando para as fotos novamente expostas no varal. A porta já estava aberta. Estranho como me sinto sentado ainda (novamente?)... Mas não posso, por mais que deseje, sair. A Célula espera me encontrar aqui. Chang disse que só os riscos de giz me protegem Deles. Há dois dias não tenho coragem de tentar sair do círculo. Chinês maldito. Sempre sabe de tudo. Definitivamente ele não aprovaria o uso de whisky ou coca agora.

O barulho da chuva me atrai até a janela. O vento se apressando e os pingos cada vez maiores e mais frios quase acabam com minha infelicidade tão cultivada. Ainda bem que a pílula amarela e azul de que tanto preciso acabou de escorregar para a rua.

A espera acaba de aumentar.

21.8.01

Necrópole Pessoal - 3 de ?
em algum momento de 2000

Ele andava só pelas ruas, mesmo depois do acidente. Vestia um terno desbotado e um chapéu amassado, vagava de ponto em ponto carregando um sorriso e o violão.

A rotina dele era bastante semelhante à de um grande período da sua vida: entrava pela porta da frente, tirava o chapéu numa reverência enquanto sussurrava boa noite, dizia o nome de uma música e começava a tocar.

A diferença maior começava nesse momento. Às vezes com sorrisos sem motivo, outras com beijos apaixonados, poucas - com o ônibus particularmente vazio e silencioso - gritos assustados. Mas sempre era notado. E - de um modo que justificava a insistência - aplaudido.

15.8.01

Necrópole Pessoal - 2 de ?
em algum momento de 2000

Há muito tempo, segundo o próprio, ele vinha sendo assombrado por um amor antigo. Na maior parte do tempo, era fácil ignorar. Bastava se concentrar em outra pessoa e as coisas transcorriam sem muitos problemas.

Mas, ultimamente, tudo vinha se complicando. Ele tinha encontrado uma nova paixão. Mas, em momentos cada vez mais freqüentes, ele enxergava nela seu antigo amor. Os indícios iam se acumulando aos poucos. Num dia, o mesmo número na tintura de cabelo. Noutra noite, a mesma combinação de velas, música, taças e talheres de anos passados.

Não que ele desgostasse da situação: tinha saudades daquele amor morto. Mas já o tinha - dizia - enterrado. Mas queria viver o amor novo. Mesmo que só pelos medos dos erros antigos.

O fantasma distante foi dominando a situação atual a tal ponto que - durante algumas semanas - o amor do momento é que era a memória etérea.

Uma tarde de domingo assistiu, entre gemidos e corpos suados, o fantasma partir. Bastou um nome - certo ou errado - sussurrado uma única vez.

4.8.01

Torpor
Em 08.11.99

na noite, sozinho
sonhava com o torpor
de seu narguilé

1.8.01

Dos Diários de Ulisses VI
em 10.10.00

Não consigo mais lembrar todas as aventuras por que passei. Desde
de Ítaca, perdi a conta das vezes que vi ao largo o Barqueiro e
coloquei um óbulo em minha boca. Entre os poucos achados e
muitos perdidos, a única constância foi esse diário.

No último desequilíbrio da Fortuna, houve um momento que pude
escolher entre meu arco e estas notas. Mas salvar o diário era todo
o importante. Mesmo ao pensar - faminto - na minha arquearia, não
consigo me arrepender.

As notas são minha imortalidade.

28.7.01

Da natureza do Mal
em 28.07.01

Após conhecer o Mal, tudo perde seu significado e se transforma. Cada rosto e lugar, sobretudo os mais familiares, se tornam outra coisa. Há um peso que perdura durante muito tempo, mesmo que a escolha tenha sido não abraçar o Mal: paga-se do mesmo jeito. Castigos não escolhem seus culpados pela razão.

E corre-se por longos corredores, por ruas escuras e escadas sem fim, perseguido por um algoz invisível, contra o qual não há nada a fazer. Há a certeza que a qualquer momento o Mal se fará presente e há a ansiedade de encontrá-lo. Por fim à fuga, às punições e confrontar ou abraçar o terror provocado por ele.

Os anos passam em fuga, na certeza de que o Mal é terrível. Até o acaso colocá-los lado a lado. E vê-se que não há motivo para temer, que os poderes do oponente se desfizeram há muito. Que não há nada mais lá.

Até que se acorda gritando, sabendo onde o Mal se instalou.

25.7.01

Dos Diários de Ulisses V
em 25.09.00

Lembro agora de Cassandra, pouco antes de ser arrastado para Tróia.
Uma voz fantasma a recitar o futuro, presa em transe. Ela tentou nos
dissuadir da guerra, mas seu tagarelar de futuros exatos a tornava
incapaz de convencimento. Um espelho preso numa cela.

Voltando sua atenção para eu onde deveria estar, Cassandra desfiou
cada detalhe de minha viagem. Do cavalo ao naufrágio, cada momento
foi descrito com uma rapidez e precisão impossível. E é isso que a
torna a profetisa perfeita: os futuros ocorrem por não serem
lembrados até serem já.

Me apavora não lembrar os erros que vou cometer.

19.7.01

Dos diários de Ulisses IV
em 17.04.00

Nâo decidi se as noites no Argos me agradam. Nas noites há paz para
pensar e fazer anotações em meu diário. Há uma certa tranqülidade -
sem sentido - em não ver as pedras das quais devo desviar.

Estranho como o vento se mantem morno na noite enquanto as cabines
ficam frias. Sinto muitas saudades dos tempos antes de Tróia quando
estou lá. Me sinto mais seguro na proa, como se Posseidon quisesse
minha companhia.

Talvez por isso ele me mantenha longe de casa.

14.7.01

Dos Diários de Ulisses III
em 26.03.00

Tenho pensado muito sobre o Cíclope, sobre a existência. Com seu único
olho e forças e tamanho descomunais, o Cíclope tinha uma existência
perfeita - se julgava perfeito. Devo admitir que - a princípio - me encantei por
ele: nem o Pégaso, nem Aquiles, ele era o maior prodígio que já vira.

Percebi, porém, que o Cíclope nunca seria mais do já que era. Ovelhas e
uns marinheiros aqui e ali eram tudo que ele precisava para se satisfazer.
Diante daquilo que ele poderia ser - caso fizesse o esforço - o Cíclope me
parecia baixo e animalesco.

Foi isso que me forçou a cegá-lo.

11.7.01

Dos diários de Ulisses II
em 15.03.00

Não é Ítaca que me causa saudades. Nem os tempos calmos antes da
Guerra. Dói reconhecer - com vergonha - que Tróia foi só uma
distração de minha tortura.

Nunca percebi quanto o mundo era grande até tentar voltar para
casa. Ele me distrai e me dá algo para tentar esconder meus
pensamentos agora. As Sereias quase me entreteram. Circe e o
Ciclope foram particularmente desafiadores.

Mas nada está além de Penélope
Dos diários de Ulisses
11.01.00

Se uma sereia fosse isolada de seu mar - apesar de continuar com
sua beleza pouco prática - seu canto perderia o efeito. Não só
pela saudade que sentiria de suas companheiras ou pela
complicada cacofonia do grupo.

Mas por que lhe faltaria o fundo da canção. Sem o som das ondas
e a acústica do local, o canto se torna excessivamente agudo.
belo, mas difícil aos ouvidos.

É tudo que tenho a dizer sobre as sereias.

23.6.01

Invocation II - ADT Remix
em 13.02.01

Pieces of
futures
killing
a present
I wish won´t
last.

14.6.01

Invocation I - Hypnomaster Remix
em 13.02.01

brain
plans
gone astray
going away
again
Invocation I - ADT Remix
em 13.02.01

My brain
connected to higher
plans

Calling forth
the past to
forget again

4.6.01

Hai-kai Molhado
em 04.01.00 (mas igualmente válido para hoje)

Tempestades com insônia,
Em imagens gélidas,
Chamando para as ruas

3.6.01

Casa de Chá
em 20.10.99

Hoje, fui atingido por um desejo enorme de beber chá. Um problema menor, uma vez que havia água e panelas e fósforos e - até - chá. Sendo assim, preparei um chá de maçã (o que não deixa de ser algo tecnicamente impossível, mas vá lá), separei algumas torradas e fim da história.

Quem me dera.

O chá que tomei, apesar de bastante agradável, não satisfez meu desejo. Tampouco as torradas sem manteiga ou geléia. Não por estarem sem manteiga ou geléia, mas por não serem o acompanhamento para o chá que buscava.

Enquanto minhas narinas eram aquecidas pelo cheiro do chá (que não deixada de ser tingido por tons de cloro queimado), percebi que não era aquele chá que queria beber. E nem nenhum outro que estivesse ali naquele momento. Eu queria beber uma sensação específica.

Eu desejava - quase precisava - beber o chá descrito em romances. Um chá quente e reconfortante num dia frio. Um que fosse ao encontro das minhas necessidades no momento, que - por conta de um livro de fantasia de segunda ou terceira categoria - passavam por me sentir acolhido por objetos inanimados, por um lugar.

Eu precisava de um café (ou uma casa de chás). Precisava entrar num lugar quente, saindo de uma rua fria. Tirar meu casaco, sorrir para uma atendente (não pela beleza dela, mas pelo contentamento de ser acolhido), sentar-me, sacar um dos livros que não encontro a dedicação para ler de meu bolso e passar horas sentindo a vida passar. Algo para beber também cairia bem. Em uma xícara de porcelana branca.

O que eu precisava, mas que chá (ou no lugar de chá), era uma dose de glamour, de beleza em coisas pequenas, das luzes amareladas de um pôr-do-sol passando por cortinas finas, de uma solidão controlada e escolhida...

Acho até que trocaria o chá por um café.
Em 08.11.00

22.5.01

Diálogo I

- Que merda de metáfora é essa? – perguntou o personagem enquanto era escrito – Até você pode fazer algo melhor para refletir o fim de minha família, meu desemprego e depressão que uma casa caindo aos pedaços. Não dá pra pesar a mão um pouco mais, não? E você acha que está escrevendo o quê? Comédia?! Fazer um pedaço do gesso do banheiro cair na minha enquanto escovo os dentes depois de um pesadelo... francamente! Você quer que as pessoas empatizem comigo ou que riam?!

- O ideal é que fizessem um pouco de cada. De qualquer modo, eu não estou inventando nada: é um romance biográfico.

- Ceeeeeerto... E isso desculpa tudo! Se você acha que essa geladeira vazia é uma forma eficiente de demonstrar meu vazio interior, fique à vontade. Mas eu não vou participar mais disso. Eu me demito!

- Como é? Você não pode se demitir. Você não passa de um personagem inspirado em mim. Eu nunca me demitiria!! Acho melhor você desistir dessa idéia.

- Claro que posso me demitir! É meu direito!! Não importa se eu fui inspirado em você ou não – e você sem dúvida podia ter escolhido alguém melhor – eu não vou mais participar dessa história! Chega! Eu dei uma olhada em suas notas e sei que eu tenho que sair daqui agora e ir procurar emprego na chuva... Mas se você acha que eu vou contribuir com seus planos de monólogo interno, está muito enganado. Eu vou é voltar para a cama!

- Eu não faria isso se você. Não sei se você está lembrado, mas tudo em torno de você depende de mim. Se você não entrar nesse chuveiro agora, vai haver um pico de energia que vai detonar seu computador. Então é melhor você se arrumar e sair.

- Mas meu computador nem está ligado!

- Agora está. Você esqueceu. Já pro banho.

- Chantagista miserável!


(continua)

20.5.01

Fantasmas num quarto de vidro
em 13.07.00

Tenho sentido uma grande vontade de escrever. Uma ambição de contar
histórias não fixadas antes. Salvo uma ou outra permutação de nomes,
advérbios ou substantivos, sei que só sobra minha voz, de "inovação".

Então fico brincando de re-escrever histórias já conhecidas, reuní-las e
apresentá-las como se elas fizessem sentido juntas. Sei que farão sentidos
quando forem vistas juntas, como um homem e uma mulher que se esbarram
vistos por olhos ciumentos: fazem sentido, mas não estão juntos.

Essas histórias - já estupidamente acusadas de poesia em prosa - pertencem
juntas tanto quanto os discos, quadrinhos, revistas, livros e gabinete do
computador que estão sobre minha cama nesse momento. Simplesmente estão
juntas lá, fruto de interesses no mesmo período.

É assim com "Amores Breves", com "Necrópole" ou "Celebridades Mortas". Todas
elas - a segunda e terceira ainda não escritas - não são mais que uma
reunião de histórinhas que vi flutando por aí. Uma ou outra, flutuando
dentro de mim, mesmo que a metáfora seja brega.

Tenho medo de me tornar outro Borges: um espelho cego pelo qual podem ser
enxergadas - de um modo distorcido, verdade - as histórias ali. Por mais que
possam discordar, não acho que seja um destino lá muito agradável: sentado
numa casa em Buenos Aires, vestido num terno invisível enquanto um
computador com a voz melifluamente humana lê para mim. Morto de medo que
decubram minha impostura, alardeando aos quatro ventos que sou um
ilusionista.

Talvez isso não seja verdade, mas é o que sinto agora.

Tenho sentido uma vontade enorme de escrever. E certos livros aumentam essa
vontade. Alguns têm até aquelas pagininhas no fundo, fruto de um descuido
ilusionário na encadernação, mas na verdade um convite ao leitor para que
continue a obra de alguma forma.

Enquanto lia o livro - que não terminei de fato, deixando uma das novelas
ligeiramente para trás - só pensava em terminá-lo para poder sentar e
escrever. Mas ao mesmo tempo, o livro me prendia, provocando que eu chegasse
logo ao final da história aparentemente vazia e extremamente reflexiva.

Não sei se esse é um bom livro. Ele criou em mim uma inquetação, um deleite
e uma raiva diante dos truques do autor. Tão óbvios de se enxergar, mas que
duvido que fosse capaz. Exatamente como um mágico de palco, enxergar o que
está atrás das cortinas não me habilita a nada.

O livro pede - ou provoca - algo que não posso exatamente identificar. Uma
vontade de ir no Brooklin da década de 80 falar com o autor, uma vontade de
falar sobre ele com alguém. De contar que entendeu a razão do título.

Ou simplesmente provoca a escrever.

Acho que é isso que provoca a dúvida da eficiência do livro. Ele não deveria
ser tão exasperador que não provocasse nada além da vontade de relê-lo e
espalhar as boas novas? Não deveria me colocar no meu lugar e me sentir mal
por nunca conseguir fazer aquilo?

Ou ele é bom justamente por me provocar? Me querer levantar e dizer ao
senhor autor que posso - e vou fazer algo igual - que não há nada ali que
algumas marcas com canetas coloridas não desvendem?

Tenho sentido uma vontade enorme de escrever. Mas falta foco.

Não faltam idéias. Tenho várias, mais do que conseguiria desenvolver de modo
algo satisfatório sem preparação. Mas não consigo me decidir por nenhuma
delas agora. Fico rascunhando na minha cabeça, anotando as frases e onde
elas se encaixam, adiando o momento de fixá-las.

Não existe um motivo para isso além da simples indecisão: qual idéia merece
vir a luz primeiro? Qual nascerá prematura, qual vai correr o risco de não
nascer por excesso de cuidados? Esse tipo de dúvida às vezes me aparece, mas
tento não dar a importância que talvez mereçam.

O imperativo absoluto que sentia alguns meses atrás passou. Não me sinto
mais desesperado: não são tempos de desespero.

17.5.01

Invocation II
em 13.02.01

Pieces of
futures
bombing my
past

Adding
noise
so Chaos
will haste

Creeping in,
crippling,
killing
a present
I wish won´t
last.
Invocation I
em 13.02.01

My brain
connected to higher
plans

Seeing pieces
of futures
gone astray

Listening
futures
going away

Calling forth
the past to be
tasted again

4.5.01

Conformação do impossível: Uma História Infantil
em 01.11.99


O menino ouviu com toda a atenção de que podia dispor a história que sua avó contara. E, naquela noite fria, não conseguia pensar em nada além de encontrar o duende que guardava o pote de ouro sob o arco-íris. Não se lembrava de ter visto um arco-íris e, na falta da memória das cores de um, sonhou com as cores de seus lápis-de-cor e um boneco vestido de verde.

O dia seguinte acordou ensolarado, enchendo de arco-íris as esperanças do menino (que não sabia como eles eram formados). Olhou para o céu o dia todo, esperando pelo caminho até seu duende. Chegou a correr em direção ao horizonte enquanto o sol se punha, na tentativa de prolongar o dia. Dormiu decepcionado ao saber que arco-íris são mais raros do que deveriam ser.

Já havia desistido de esperar por um arco-íris quando finalmente aconteceu um. Saiu correndo em direção aquele horizonte, rindo. Sua irmã, que tinha ouvido ele falar dia e noite no amigo que encontraria do outro lado, esperou até o momento certo para desfazer suas ilusões.

- Não existem duendes! Você nunca vai alcançar o arco-íris! - gritou com todas as forças quando entendeu o que estava acontecendo.

- Não é isso que importa! - foi a resposta de além do horizonte.

30.4.01

Cinza



Aprendera - sem perceber - a ficar em silêncio. Nada de gritos ou lamentos, só reticências. Toda sensação substituída por elipses.

Antes, os objetivos tornavam tudo mais claro. Os alvos mudavam, as dores passavam e voltavam. Tudo era bem definido e ciscunscrito. Intenso, importante, definitivo. Mas tudo se misturou e as cores ficaram cinza.

E ele passava sem conseguir se importar.

24.4.01

Num Quarto Fechado

Passava os dias trancada no quarto. Não queria ter que ver ou falar com alguém: o esforço de qualquer resposta a destruiria, tinha certeza. Então ficava os dias trancada no quarto, os fones no ouvido, ignorando o mundo. Estava de férias dele.

Passava os dias com livros, cadernos e bonecas. Encenava peças e anotava os resultados. Tinha uma atriz preferida, que sempre ficava com o melhor papel: o da autora. Reprisava algumas peças dezenas de vezes, fazendo alterações aqui e ali. Quando encontrava a voz ideal, batia tudo à máquina e enfiava num envelope pardo.

Saía do quarto toda noite, quando a luz do corredor apagava, no sinal combinado. Andava até a cozinha, onde havia sempre algo para ela. Depois até o posto de gasolina na esquina. Andava pelo meio da rua: era mais fácil evitar as pessoas assim. Depositava o envelope pardo na caixa postal, depois colocava umas moedas nas máquinas de doce, enchia os bolsos e voltava pra casa.

Nem sempre ela se comportou assim. Houve um tempo em que ela participava do mundo. Até que uma perda de intensidade crescente foi recolhendo-a para seu quarto, até se sentir irreal demais para encontrar as outras pessoas além da porta. Resolveu então que ficaria ali até que conseguisse escrever seu caminho para fora.

16.4.01

Interurbano

O silêncio ao telefone. Como ficar abraçado sem se olhar após uma briga ou as mãos dadas quando se quer ficar sozinho. Um contato sem sentido.

Mas sem o qual tudo se desfaz.

Tenho saudades do silêncio ao telefone. É como deitar no seu colo no escuro, às vezes sentindo sua respiração. Como saber, sem sentir, que você está no quarto. Tenho muito pra não dizer.

Me liga.
Em 14.02.01
Rodolfo S FIlho - 14.02.01

10.4.01

London in the low tide of the night - um videoclip
Everything But the Girl


London in the low tide of the night,
not a taxi cab in sight.
Anaesthesied I start the journey home.

(Noite - Rua vazia
Homem I sozinho sai de um pub. Olha para os dois lados, anda
no sentido da rua. Olha para trás, para, ajeita o casaco.
Recomeça a andar.)

I´ve been living months alone,
I´ve being avoiding things
- the phone rings,
I use the answerphone.

(Noite - Apartamento
Mulher I debruçada na janela, olhando os carros passarem.
Sai
da janela, passa por uma mesa cheia de papéis, levanta um,
larga no chão. Senta ao lado do telefone no chão. Se
encolhe)

Inside out in the daytime
(Noite - Apartamento
Close no rosto da mulher, encolhida junto à parede)
Outside in in the night time.
(Noite - Rua vazia
Close no rosto do homem, olhando para trás)

When you´re down and troubled
you don´t tell your friends,
you don´t tell your family,
won´t let them talk about me.
I´m gonna let nobody down.

(Cenas de lugares grandes com apenas uma pessoa neles:
cinemas, salas, ruas, pontes...)


SoHo in the high tide of the day
and for a while I´m swept away
- I just forget it.

(Dia nublado - Rua cheia
Mulher I andando sozinha, olhando para o chão, se esbarra em
várias pessoas)
I use my walkman when I walk
I don´t talk,
but later the moment is gone
and I don´t get it.

(Dia nublado - Rua cheia
Homem I andando sozinho, com fones de ouvido. Examina o
ambiente com ar triste)

Inside out in the daytime
Outside in in the night time.

(Homem I e Mulher I se cruzam durante uma travessia de rua)

When you´re down and troubled
you don´t tell your friends,
you don´t tell your family,
won´t let them talk about me.
I´m gonna let nobody down.

(Cenas de lugares grandes com apenas uma pessoa neles:
cinemas, salas, ruas, pontes...)

Who shall I be tonight?
(Noite - Banheiro
Mulher I sai do chuveiro, limpa o espelho e se encara)
Who´s gonna see tonight?
(Noite - Banheiro II
Homem I se encara no espelho, restos de espuma de barba no
seu rosto)

Inside out in the daytime
Wrong at the right time.
I wanna know I´m good for you.

(Noite - Rua
Mulher I sai de um prédio e começa a caminhar
Homem I sai de um prédio e começa a caminhar para o lado
oposto)

Outside in in the night time,
right at the wrong time.

(Noite - Rua
Homem I e Mulher I parados um de cada lado da rua, esperando
para atravessar)
I wanna know I´m good to you.
(Alterna close do Homem I e Mulher I enquanto atravessam a
rua)

When you´re down and troubled
you don´t tell your friends,
you don´t tell your family,
won´t let them talk about me.
I´m gonna let nobody down.

(Noite - Rua
Passam direto um pelo outro. A câmera vai se afastando
enquanto atravessam até a rua ficar vazia.
Novas imagens de lugares amplos, agora totalmente vazios)

6.4.01

Uma idéia antiga que acabou dando outros resultados. Melhores, mas não os esperados. Não lembro de quando anotei isso, mas foi na mesma época do primeiro "Amores Fugidios" (Janeiro de 2000).

"Uma paixão no trem.

Começando na estação. Surpreendentemente continuando no trem.
Tendo seu pico em um túnel.
E ela desce na estação anterior.

'Admitir que foi ele a beijá-la seria admitir uma rudeza que não era sua. E ele de fato não saberia o que fazer quando ela ruborizasse e dissesse que sabia e por isso beijara de volta.
Se ele a conhecesse além das roupas daquele passeio, saberia que ela não ruborizaria.' "

2.4.01

Sexo e Chuva: Outono
(em 21.03.01)

A varanda aberta e o vento frio entrando por ela. O casal na cama, coberto por um lençol pequeno demais. Sonhos separados e distantes em cada sono. O frio ao se tocarem sem intenção.

A chuva que começa, acelerando. O barulho e as gotículas refletidas no chão perturbando o sono. A impossibilidade de permanecer dormindo. A preguiça de levantar. A pele gélida no ombro adormecido.

Um beijo forçado demais. Os toques brutos demais. A cama molhando. Aproximação rápida demais, direto ao ponto demais. A tentativa vazia de se preencherem de novo.

O ritmo que tenta resgatar o que passou. Os olhos que se evitam.

O fim sem alívio.


A chuva que passa.


O vento frio.