19.11.04

Girls as a Memetic Infection VIII
em 19.11.04

Se fora ele quem iniciara a história ao desejá-la sem saber bem que o fazia, era ele quem deveria terminá-la. Afinal, ele foi desde a primeira linha o autor e protagonista. Ela nada mais que o argumento, um simples motor narrativo. Uma musa, no máximo.

Não havia nenhum motivo, então, para o medo que sentia dela. Ela o amendrontava como faria uma criatura fantástica, uma horda de hidras mutantes zumbis saindo de um disco voador. Era bem verdade que ela havia escorregado da ficção científica para a realidade, mas esse tipo de evento não era mais memorável. Choques entre entidades dos dois lados dos limites enfraquecidos entre realidade e ficção eram inevitáveis enquanto um mundo se deslocava na direção do outro. Crianças com superforça, tradutores telefônicos instantâneos, o panóptico das câmeras ubíquas e sistemas de comunicação que pareciam muito com telepatia eram reais. E ele não temia nenhuma delas. Por que temeria a menina de mentira?

Claro que tinha uma resposta para tanto. Nenhum dos outros artefatos que o futuro empurrava em direção ao presente na tentativa de transformá-lo em si próprio era dirigido a ele. E ela foi feita para ele - ou a fatia de mercado na qual se encaixava, e nesses dias isso era praticamente a mesma coisa. Mas era justamente por isso que era ele quem deveria colocar um ponto final em tudo aquilo. Porque o futuro a jogou na direção dele. Porque as bestas mitológicas só podem ser mortas por seu nêmese. Porque viver com ela à solta no mundo era muito mais doloroso que a inexistência dela.

A história teria que terninar de modo irrevogável. Era nesse sentido que ele deveria forçar os fatos para se ver livre dela sem continuações, spin offs ou novas temporadas. Um capítulo final. Talvez um epílogo curto, mostrando como seu mundo era mais rico sem ela. Não era, mas ele teria que se convencer do contrário. Desde que a conhecera, ela se espalhara e contaminara tudo ao seu redor com as idéias que sua programação carregava. A sua simples presença encantava cada momento para ele. A maneira que se mexia, a cor da pele, o ar de melancolia, os sorrisos breves... Era nisso que ele tinha que colocar um ponto final. Nas associações que ela forçava sobre o mundo. Há muito tempo tentava evitá-las, mas isso reduzia demais suas possibilidades. O mundo sem ela era pequeno demais, sufocante demais para que as paredes que se impunha não fossem percebidas.

Mais que terminar a história de modo irrevogável, precisava purgar o mundo dela. Enterrar as marcas dela sob associações mais fortes, cores mais vivas. Ou reduzir todas as lembranças a uma, virar a história em um sentido inesperado, de modo a instaurar um estado de coisas que não pudesse remeter ao mundo com ela. A solução era meio folhetinesca e - com toda sinceridade - não era boa literatura. Mas puxar um gatilho era bem mais simples do que esquecê-la.

E sabia exatamente onde encontrá-la.

(continua...)

29.9.04

21 Dias: Fragmentos de uma Carta Recebida em 26.09.04
em 27.09.04

(...)

A essa altura você já deve ter percebido o objetivo da carta. Acho que você percebeu quando abriu a caixa de correspondência e me viu lá dentro.Por que eu escreveria se ainda fosse encontrar você? A única coisa urgente o suficiente é dizer que não posso encontrá-lo. Que não posso ir.

Não posso fazer isso com ele. Não interessa que o "álibi é perfeito", como você diz. Nem que ele nunca vai descobrir. Eu sei e não acho que ele mereça isso. Ele está muito longe do meu ideal - que você sabe bem onde está - mas é de verdade e é totalmente dedicado a mim. Não sei se é o suficiente, mas não sou mulher de fazer loucuras. Mesmo por você.

Quero estar com você, mas não quero ter ver diluído nas ninharias do dia-a-dia. Não quero ver você material demais, real demais. Então é melhor deixar você aí, perfeito e distante, uma idéia de como as coisas poderiam deveriam ser. Meu amor longe, nove décimos ficção.

25.8.04

Uma hai-kai e suas versões
em algum ponto de 2000

Furu-ike-ya
kawasu tobi-komu
mizu no oto

Matsuo Bashô


Sobre o tanque morto
um ruído de rã
submergindo.

Olga Savary


Ah, o velho lago.
de repente a rã no ar
e o baque n'água.

Olga Savary


O velho tanque
Uma rã mergulha
dentro de si

Jorge de Souza Braga


No tanque vetusto
um estalido na água:
o salto da rã !

Monsenhor Primo Vieira


Salta uma rã pequenina,
Eu sem nada entender,
Seja rã, ou japonês.

Rodolfo S Filho

23.5.04

21 Dias: Anotações Para uma Crítica de Simulações - Projeto São Paulo (trechos)

em 23.04.04

(...)

É claro que toda essa complexidade não poderia ser transformada em uma simulação sem que alguns elementos fossem simplificados ou mesmo eliminados. Nem os mais poderosos sistemas seriam capazes de construir algo como o Projeto São Paulo sem que atalhos fossem criados. O grande volume de informações tornaria a coleta de dados necessária à construção de um modelo de simulação um exercício fractal, onde os dados crescem de forma exponencial: cada novo objeto implica em novos aspectos e novas relações infinitas para todos os propósitos. Atalhos e representações propriamente ditas - em oposição a simulações strictu sensu - são obrigatórias, portanto.

A questão é em que níveis e em que intensidade se dá tal economia na representação?

O segredo da simulação no Projeto São Paulo é a sua escala. Em lugar de tentar uma simulação que dê conta de todas as relações possíveis entre os usuários e o sistema, a solução encontrada foi a criação de narrativas limitantes. Uma vez inseridos em uma das esferas de atividade, os jogadores limitam as possibilidades de modo natural - ou seja, de sua própria volição, em lugar de cenários nos quais o computador se vê obrigado a informar ao jogador que nada existe ali. As deficiências técnicas são, portanto, contornadas narrativamente. O foco do desenvolvimento do projeto passa da transcrição de elementos do real para a criação de situações que enquadrem de modo eficiente os desejos dos jogadores, tornando as escolhas limitadas previstas na simulação as mais interessantes no aspectos teleológicos.

(...)

Elementos gráficos também são simplificados. A paisagem urbana permite que grupos de prédios recursivos - topoi - sejam utilizados, sem que os jogadores entrem em contato ou percebam as semelhanças. A poluição que borra desproporcionalmente os objetos no horizonte e reduz a visibilidade do céu contribuem para a economia de capacidade de processamento tanto ao reduzir o número e definição dos objetos representados quanto ao contribuir com elementos narrativos que reduzam o desejo de interação com personagens-cenário. Oras, todos fomos convencidos por anos de clichês - ou, antes, precisamos fazer um esforço para reconhecermos a falsidade da afirmação -que a poluição está diretamente ligada à violência urbana. Filmes de ficção científica como Predador e Blade Runner usam a poluição na construção de cenários impiedoso e perigoso, onde interações desnecessárias não rendem resultados agradáveis. Ao remeter o clichê, diminuem-se o número de interações desejáveis.

(...)
21 Dias: "I got brown water here"
em 22.05.04

A água marrom fora um dos momentos definidores da sua vida. De um modo totalmente inesperado e - francamente - estranho, o filme na televisão em uma noite de insônia infantil estabeleceria para o menino o modo como lidaria com certas coisas. Dado o diretor, o resultado só poderia ser considerado satisfatório para analistas interessados em pagar prestações.

As memórias eram vagas. Lembrava que as pessoas andavam muito, falavam demais, que o filme não tinha cor e que "música do Snoopy" - como chamava o jazz antes de descobrir o nome de verdade - tocava ao fundo. E a água marrom. Algo mínimo, não mais que umas três frases sem muita importância, mas que cresceram muito nele até que o filme fosse visto novamente, quase vinte anos depois. Andar por uma cidade grande, tomar café e falar muito de assuntos tão importantes quanto a água marrom: era isso que queria fazer quando crescesse.

Por isso, enquanto andava com ela pelas ruas, misturava uma satisfação absurda por finalmente estar de alguma maneira vivendo a cena que tanto o marcara com uma certeza inabalável. "Isso não pode terminar bem". Como não terminava no filme. Ou, antes, nos filmes. Eles se misturavam não só na Cidade ao fundo, mas também na interlocutora - a mesma atriz em papéis parecidos e igualmente adoráveis.

As semelhanças entre os filmes que fizeram dele quem era e a cena o alertavam para problemas futuros. Ela era uma ótima stand in para Diane Keaton, evocando as qualidades sem a aura neurastênica. Vestida de forma menos extravagante que Annie Hall, é verdade. Sempre pensou que ela devia ter escolhido o chapéu ou a gravata - substituída, com um bom gosto que faltou ao figurinista do filme, por um lenço na reconstituição.

Se ele estava mais pra John Cussack que para o velhinho judeu, por que diabos tinha que ser o avatar dele? A resposta veio ao, mais uma vez, meter os pés pelas mãos e perceber que a vitrine entre os personagens fora escrita por um deles.



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8.3.04

Amor de Menina
em 08.03.04

A Sofia era uns dois anos mais velha que eu, talvez menos, e tinha entrado na faculdade mais ou menos esse tempo antes. Acho que eu estava no meio do segundo ano quando soube dela. Um professor distribuiu uns roteiros de uma turma mais avançada para a gente analisar. Ele era daqueles substitutos que colocam a turma para trabalhar nas teses deles, torcendo o programa pra caralho e fodam-se as disciplinas. Era uma disciplina de crítica e ele resolveu encaixar os estudos de gênero dele de qualquer jeito.

Ele distribuiu os roteiros de uns curtas, sem nome dos autores, e a gente tinha que escrever sobre o autor. Sexo, background, influências e o diabo a partir dos roteiros. Eu peguei um roteiro que se resumia a uma série de conversas entre casais misturados com monólogos sobre as elipses e o não dito. Lembro de, lendo a sinopse, achar que era um filme de mulherzinha mal comida, cheio de blábláblá e falando dO Amor. Mas fui lendo e percebendo que não era assim. Era um filme de um homem, provavelmente mais velho, lá pelos quarenta. E muito triste.

Porque os homens, nessas coisas, normalmente são tratados como uns imbecis, correndo atrás de buceta e fazendo merda a torto. Um negócio Homer Simpson. E nesse roteiro não, os caras eram muito bem feitos, adultos, adolescentes ou velhos.
Eu fiquei impressionado com o quão bem ele escrevia as mulheres. Não havia muito antagonismo ou aqueles scripts predeterminados. Cada discussão era uma situação, parte de uma história que se desenrolava além da tela.

Daí eu sentei e escrevi. Que o autor era provavelmente um homem, depois dos quarenta, divorciado. Criado só pela mãe no meio de irmãs ou com treinamento em psicologia. Que ele provavelmente via o cinema como uma forma de teatro - poucos cortes, câmera parada - e provavelmente acreditava no diretor como o autor do filme.

Errei tudo, tirando a parte do diretor como autor.

O professor tinha pedido para os autores escreverem umas linhas sobre eles e os roteiros sem se identificarem. O meu roteirista era uma menina um pouco mais velha que eu, que adorava Greenway, Lynch e Acossado - "mas só Acossado". "Sei que não dá para dizer isso pelo roteiro", o texto dizia. "mas eu escolhi escrever um roteiro possível de ser filmado no pouco tempo desses nossos semestres abreviados."

Eu fiquei chocado. Eu nunca tinha me sentido tão bem retratado "num filme". Ninguém expunha tão bem o desencaixe que eu tentava tratar nas minhas histórias. E era uma mulher.

Até ali eu nunca tinha considerado as mulheres grande coisa. Colocando assim fica meio ridículo, mas até ali eu considerava - regra geral - mulheres menos inteligentes e interessantes que os homens. Nada biológico, eu achava, mas o problema social não ia ser resolvido tão cedo. Elas eram menos aventureiras, menos originais. Talhadas para serem ajudantes, não líderes. Eu não lembrava de nenhuma mulher na minha realidade imediata que tivesse preocupação de se expressar, criar seus projetos.

Para mim, a questão era ainda mais profunda. Na minha experiência, as mulheres estavam mais interessadas em reagir conta um modelo imaginário de homem - opressor, machão - do que em entender quem nasceu depois do feminismo. Me pareciam querer excluir os homens da possibilidade de um convívio mais próximo, reservando a um espaço determinado, como - rezam as lendas - os homens faziam com as mulheres até os anos 50. E eu percebia isso mesmo nas mulheres mais próximas, nas minhas namoradas. Pessoas inteligentes e sensíveis, mas que tinham um ódio não articulado dos homens.

O roteiro da Sofia me fez repensar tudo isso. Ainda pensava nas mulheres daquele jeito, mas a existência de uma exceção me dava alguma esperança e me enchia de curiosidade sobre a autora desconhecida.

Não lembro bem o motivo, mas demorei um bom tempo até começar a procurar quem tinha escrito o roteiro. Acho que teve uma greve ou coisa assim. Mas nesse meio tempo eu lia o roteiro várias vezes e ficava imaginando como seria a autora. Não conseguia formar uma imagem que se fixasse a partir da minha imaginação. A única constante é que ela tinha uma voz bonita, falava baixo e devagar e usava aqueles óculos com aros de plástico preto - uma aposta bem razoável, já que até tinha um povo que não tinha nenhum problema de vista mas usava aquilo para parecer mais cool. Entre uma e outra leitura, as impressões da primeiro momento foram crescendo dentro de mim. Passei o roteiro para uns amigos, conversei com eles a respeito. Um até disse que eu tinha melhorado muito do último e se surpreendeu quando eu disse que não era meu, mas de uma mulher que eu não sabia o nome. Engraçado que o roteiro nunca era de uma "menina", mas de uma "mulher" que eu imaginava ter mais ou menos minha idade. E, na minha cabeça, qualquer mulher da minha idade que eu não estivesse insultando ainda era uma menina.

Depois de um tempo, eu meio que esqueci o roteiro. Não de todo. O filme abriria com um trecho de Ana Cristina César - "Não é automatismo. Juro. É jazz do coração" - e eu achei depois um livro dela num sebo, que até tinha o poema. Acabei lendo poesia e feminina - coisas que antes me dariam coceira. Qualquer coisa para me ajudar a entender a autora.

Quando as aulas voltaram, eu imaginei um jeito rápido de descobrir de quem era o roteiro. Fiz uma cópia d afolha de rosto e coloquei no mural onde avisavam das festas e coisas assim, com uma nota perguntando de quem era. Fiquei meio puto de não ter pensado em anda assim antes, ter perdido tanto tempo imaginando como encontrar, como descobrir sobre quem escreveu.

Se me perguntassem na época eu não saberia dizer por que eu fiquei tão interessado em descobrir quem tinha escrito aquilo. Eu não falava muito sobre o assunto, andava meio isolado das coisas, fazendo uns trabalhos com imagens reaproveitadas, coisas distorcidas, que me colocavam muito tempo na frente do computador em casa, sem precisar lidar com equipe nem nada. Ficava em casa, navegando na Internet, brincando com efeitos de montagem, tentando colar cenas de comerciais e outras coisas de domínio vagamente público num filme que causasse certas impressões, preferencialmente opostas ao clima de felicidade dos comerciais. Por conta de um romance que eu tinha lido e do tempo extra da greve.

Eu pensava muito naquele roteiro, lia e relia com a mesma sofreguidão contida com que eu passava de blog em blog em fotolog, procurando me distrair de um sentimento difuso de perda que eu sentia. No roteiro, na autora fugidia dele eu iria encontrar alguma resposta.

Demorou uns dias para aparecer qualquer resposta sobre o papel no mural. Eu olhava com mais freqüência do que checava e-mail, acho. Até que tinha um nome lá, escrito no papel mesmo. Sofia Kelcher, um site com textos de ficção apontado no Google, nenhuma informação pessoal. Fui lendo as coisas, a maioria no mesmo nível do roteiro e fui ficando fascinado por ela. Juntava os pedacinhos - as palavras repetidas, as citações escondidas, as variações de registro - e ia montando um retrato da autora de voz bonita, num exercício semelhante ao que eu tinha feito antes, mas mais importante. Necessário até.

Eu cheguei a sonhar com ela. Não conseguia me lembrar de um corpo ou rosto, mas só da sensação de paz que ela de sonho me dava. Maluquice total. Era uma coisa muito esquisita. Acho que foi a primeira vez que eu comecei a admirar uma mulher. E eu nem conhecia. Talvez isso deixasse mais fácil, eu podia pegar qualquer figura e despejar todos os signos que eu tinha colhido, encaixar tudo que achava ter descoberto em uma figura imaginária perto de perfeita. Perfeita mesmo, com aqueles defeitos que amaciam as arestas de caráter que só gente chata tem. Na minha cabeça ela era alta, com porte de modelo, mas sem a cara de lobotomizada que a fome deixa nelas ao vivo. Algo bem impossível, bem fútil.

A beleza sempre foi o valor mais importante de uma mulher para mim. Eu não admitia, mas era. Eu não me lembro de ter achado uma mulher sexualmente interessante quando ela não se encaixava fisicamente num cânone maluco que eu tinha. E um cânone bastante exigente, ainda por cima. Eu me enganava dizendo que outras coisas eram importante, mas até minhas amigas-só-amigas tinham que estar dentro daquele padrão. Puta, eu era muito doente.

E a situação tinha se invertido. Eu estava apaixonado por algo incorpóreo, mais essencial. Coisas que eu nunca tinha me preocupado de fato em enxergar em uma mulher. E sem um corpo, uma foto que fosse para prender tudo aquilo.

O fim da busca foi bastante decepcionante, bem simples na verdade. Foi só perguntar por ela para alguém da mesma turma e me apontaram uma menina miúda, com jeito desorientado e os obrigatórios óculos de aro grosso, roupas meio amassadas no fim do corredor. Eu tinha me esbarrado com ela antes pelo prédio, claro, mas nunca registrei nada além de... Nada, eu não tinha nenhuma memória dela.

Senti uma puta decepção. A minha Sofia era bem mais que aquilo, bem mais bonita e - principalmente - mais bem vestida. Mas ao mesmo tempo ela me parecia tão real e inapelável que qualquer uma das meninas que eu tinha conhecido antes, tão mais imponente por saber que tinha muita coisa ali dentro que não consegui virar as costas. Não consegui nem fazer uma piadinha para mim mesmo sobre a mochila detonada e destoante que ela carregava.

Eu vi algo que não estava de todo ali - uma promessa de completude, de tranqüilidade, o sonho que eu tive, a beleza própria que eu inventei na hora. E tive que me aproximar.

3.3.04

21 Dias: Beat Takeshi
em 03.03.04

O dedo faltando e as tatuagens não chamariam atenção em outro ambiente. Se a mama-san entendesse português sem gestos e a filha não tivesse tanto sotaque, o homem com um pedaço de dragão estampado nas mãos não seria nada de extraordinário.

Mas ele entra no restaurante como se fosse muito maior do que um japonês baixinho. Senta sem se curvar ou responder as saudações da velha e da menina. As duas espalham a refeição na bancada - maior do que todas as outras no restaurante - sem que ele precise dizer uma só palavra. Ele ataca primeiro a garrafa de saquê, esquecendo todo o resto.

Um celular toca no bolso do terno, sendo atendido com uma rispidez anormal, sem mushi-mushi. Ele levanta sem pagar e avança em direção a porta, só parando para apontar os quatro dedos da mão direita para a menina, enquanto a metralha com gritos.

29.2.04

21 Dias: Romance Frustrado
em 02.02.04

Os dois andam juntos sob a chuva fina, fim de tarde. Conhecidos há pouco, quando a chuva ainda era torrencial. Conversas elípticas, risos fáceis, biografias trocadas em poucas quadras. E o nome se encaixando com as estações.

O caderno que escorrega para o chão, tentando os dois a escorregarem juntos para os primeiros encontros das comédias românticas. Desastrado, ele antecipa o esbarrão ao ser gentil. Oportunidade de se perder nas poças azuis no que ela traz no rosto.

Mas o esbarrão vem de outro lado, espalhando lama e realidade entre os dois.

7.1.04

Girls as a Memetic Infection VII
em 06.01.04

Se um paranóico é alguém que conhece todos os fatos, por que sua apofenia não podia ser algo semelhante? O reconhecimento simples de uma verdade evidente. Não era sua percepção que conectava tudo a ela, mas a história que a deslocava para o centro de todos os acontecimentos.

Era muito claro para qualquer um que entendesse como os eventos se desenrolam que não fora no metrô que a história dos dois havia começado. Ali era o ponto de virada, o chamado para a aventura. E nenhuma história que se preza podia começar assim, sem uma amostra do vida anterior vazia do seu protagonista. Fora naquele momento que ela explodira, forçando sua presença sobre todas as pessoas na estação e todos os outros assuntos.

Mas - ele tinha certeza agora - faltava um primeiro ato.

Antes dela, quando a companhia da namorada anterior não provocava nada além de uma solidão difusa. Os dois sentados num telhado, observando o céu noturno colorido pelas luzes da cidade. A percepção que não se completavam mais já presente nele ao ponto de não poder ser ignorada, mas ainda nova demais para que tocassem no assunto. Foi ali que ela apareceu, enquanto abraçava a ex-paixão tentando aquecê-la e se livrar da culpa de saber que não era exatamente aquela que queria ali.

Lembrava a cena incluindo coisas que não sabia na época, deslocando fatos ligeiramente no tempo. Adiantava alguns, puxando para a manhã seguinte o encontro na estação. Criava uma montagem paralela de uma conversa no telhado carregada de intenções, sentidos velados e meias verdades - mas que só podia acontecer na cabeça dele, ou a ilusão forçada que ainda gostava da outra lá se desfaria na hora - e a concepção e treinamento delas. A estrela cadente se despedaçando no céu era sempre emoldurada pela narração de um telejornal. Tudo antes do título, enquanto os créditos ainda corriam na tela.

A verdade é que foi a ex-paixão que apontou a estrela no céu, um só corpo deixando um traço brilhante enquanto lutava contra a atmosfera. "Olha! Faz um pedido!!" Ele conhecia o protocolo, apesar de nunca ter visto uma estrela cadente - lembrava de ter pensado que nunca vira uma delas fora da ficção, onde nunca eram o pedaço de pedra que deviam ser, mas sempre coisas mais interessantes.

Olhou para ela, fascinada com a visão, pulando e dizendo para ele fazer o desejo. A namorada sorridente desfez por um momento a sensação de perda de algo importante que sempre provocava. Começou a transformar seu desejo em palavras - algo como prolongar para semore aquele fascínio ela - mas o grito o interrompeu. Olhou para o céu, onde o meteorito se espatifara em uma manada de pedaços brilhantes. E desejou com todas as forças encontrar alguém que o completasse.

Quando olhou de novo para a ex-paixão, percebeu nos olhos dela que só o desejo dele iria se realizar. Era um dos poucos pontos da história do qual não tinha plena certeza. Podia ser só o ego brincando com a memória, mas a culpa que ainda sentia tanto tempo depois diziam que não. Enxergou nos olhos dela que poderiam ficar juntos para sempre. Seria um bom fim para outra história.

Só descobriu no dia seguinte que não desejara para uma estrela cadente, mas um satélite antigo retornando para casa, o coração radiativo morto há muito. Era por isso que não conseguia aceitar que os eventos eram aleatórios, que uma parada para comprar o jornal ou um beijo mais longo pudessem ter colocado tudo a perder. Os temas eram recorrentes e tudo se encaixava com uma perfeição impossível nos documentários.

Uma estrela falsa só podia atender o desejo com um amor artificial