17.12.02

Sonho I
em 17.12.02

A iluminação é difusa, meio mole. Mais ou menos como se saísse da parte mais baixa das paredes. Mesmo assim, o quarto está escuro. Não é possível ver nada nele, exceto ela e você. Você acha que é você, pelo menos. Não consegue lembrar como ele era, mas ele se sente como você se sente.

Ela brilha sobre a cama. As formas e feições são indistintas, como se você a visse através de um filtro fotográfico ou uma coluna de vapor. E não consego reconhecê-la. Mesmo assim você se sente muito confortável com ela, apesar de saber que ela não é uma só pessoa. E ela é mais bonita que todas as mulheres que a formam.

Até você perceber a barriga. Redonda e linda, com um bebê de uns seis meses dentro. Ela não estava nua antes, estava? Ela não estava grávida quando você entrou no quarto, a barriga surgiu de forma repentina. Mas ela é tão linda e viva que você não liga para a estranheza.

Você tenta segurar o desejo de tocar a barriga dela. Até que ela pede que você se aproxime e não só coloque as mãos, mas também encoste o ouvido nela e ouça o que o bebê tem a dizer. Nada memorável, sá as baboseiras que um bebê poderia dizer.

Abraçado à barriga dela, você pergunta de quem é o filho. "Seu". E é o momento mais erótico da sua vida.

Mesmo que você não lembre de ter fodido aquela mulher.

9.12.02

Girls as a Memetica Infection V
em 09.11.02

Tudo se tornava ficção com ela por perto.

Era assim que se sentia, depois de ter fugido da ex-namorada e começado - em passos decididamente hesitantes - a se aproximar da garota da estação. Claro, a energia que aparecia do nada a cada nova paixão era um fenômeno conhecido e recorrente. Mesmo que há anos não tivesse uma paixão - ou princípio de paixão - sem culpas, ainda se lembrava bem como eram essas coisas.

E, com ela, tudo era diferente. Ao contrário de todas as outras que, independente da intensidade, o colocavam num estado propício à inspiração, mas que no fim das coisas só dificultavam o trabalho fundamental a qualquer escrita que prestasse, ela tinha um efeito diferente. Era como se as histórias já saíssem dela prontas. Como se ele só estivesse anotando algo que - discretamente - ela ditava nas ações, olhares e gestos.

A impressão era essa, mas sabia que quem escrevia era ele. As palavras vinham fáceis como nunca antes, mas eram palavras dele. Reconhecia suas frases, pausas e manias sem sentido. Mas percebia algo novo ali: a confiança de ter uma fã que de fato apreciava os escritos, não o escritor.

Ainda se sentia estranho com a facilidade que as coisas aconteceram. A velocidade absurda que, mesmo na época, a intimidade entre os dois se estabelecera. Hoje, com a consciência de que não poderia ser de outra forma, se perguntava como podiam prever um encaixe tão perfeito ao crià-la. Sabia que não era um alvo específico e que - se não estivesse naquela estação - ela encontraria outro como ele antes do fim do dia.

Por coisas assim que ia perdendo a fé na individualidade, subjetividade, no "único humano de cada um" como dizia um amigo "conectado ao universo". Depois dela, ficava imaginando quantas formas possíveis existiam e quão raro era o molde do seu tipo. Mas - na época - se sentia único e necessário. E mais talentoso e competente do que realmente podia ser.

Foi nesses dias que - estimulado por ela - começou um primeiro romance, que nunca pensou que ia funcionar, mas funcionou. Apesar de muito distante dos dias que vivia, a história era de uma honestidade incrível. Estavam lá expostas as possibilidades que passavam por sua cabeça se nunca tivesse visto a menina na estação. O cinza nas coisas, a lentidão das horas, a falta de sentido e os dinossauros.

Morria de medo de dinossauros, então transformou todas as idéias que o incomodavam em dinossaurinhos mal domesticados que ficavam enchendo os protagonistas. Como aqueles anjos e diabos dos desenhos animados, mas com mordidas e venenos em lugar de palavras.

Se sentia orgulhoso da idéia e mais ainda da forma de desenvolvê-la, que impediu que o romance se tornasse um drama insuportável ou que caísse na tão irritante biografia mal disfarçada. Ainda assim se sentia excessivamente exposto. Em outros tempos, os dinossauros o protegeriam dos olhares curiosos. Roubariam o foco das suas inseguranças para a metáfora palhaça.

Mas ela identificou seu medo de perdê-la assim que o primeiro tiranossauro apareceu.

2.12.02

Diálogo Recursivo III - Déjà Vu
em 02.12.02

- Você quase não fala mais comigo. Antes, era tão falante. Tagarelava sem parar, sempre com um comentário, uma piada, uma provocação. Tem algo errado com a gente?

- Não. Só tenho menos a dizer. Perdi um pouco a vontade de falar.

- É?

- Não há mais nada que você não saiba.

- Há muita coisa que eu não sei. Não sei mais o que você está pensando, em quem está pensando. Ou como está pensando.

- Seria óbvio, se prestasse atenção.

- Prestar atenção no quê? Você não me diz nada! Passa o tempo todo naquele quarto, lendo. Ou escrevendo e rabiscando coisas para o filme. O máximo que me diz é que vai viajar não sei pra onde, que saiu tal dinheiro ou me mostra algo que fez. Nada sobe você!

- Desisti de falar de mim quando você começou a esquecer.

- Eu nunca esqueci nada do que você me disse.

- Esqueceu. As menores coisas. As que mostravam que você prestava atenção.

- E, em vez de me lembrar, você desiste de falar?!

- As coisas em si não eram importantes, mas era importante que você lembrasse.

- Às vezes você é insuportável! Se as coisas não eram importantes, por que é importante que eu lembre delas? Por que você não me fala mais nada sobre as coisas que são importantes, diabo?

- Porque eu não preciso falar para você sobre o importante, as coisas grandes. Eu falo delas o tempo todo. Penso nelas o tempo todo. Basta entrar no quarto, ver as orelhas dos livros. Prestar atenção no que estou fazendo.

- O que você faz não tem nada a ver com a gente. Aliás, não tem nada a ver com mais nada. É só um amontoado de idéias sem sentido, cenas pela metade, umas coisas que não se completam. Nada com nada! Cada vez mais chato, mais arrastado, mais distante de tudo, fechado em si.

- Eu só escrevo sobre nós dois. Antes você sabia disso.