17.12.02

Sonho I
em 17.12.02

A iluminação é difusa, meio mole. Mais ou menos como se saísse da parte mais baixa das paredes. Mesmo assim, o quarto está escuro. Não é possível ver nada nele, exceto ela e você. Você acha que é você, pelo menos. Não consegue lembrar como ele era, mas ele se sente como você se sente.

Ela brilha sobre a cama. As formas e feições são indistintas, como se você a visse através de um filtro fotográfico ou uma coluna de vapor. E não consego reconhecê-la. Mesmo assim você se sente muito confortável com ela, apesar de saber que ela não é uma só pessoa. E ela é mais bonita que todas as mulheres que a formam.

Até você perceber a barriga. Redonda e linda, com um bebê de uns seis meses dentro. Ela não estava nua antes, estava? Ela não estava grávida quando você entrou no quarto, a barriga surgiu de forma repentina. Mas ela é tão linda e viva que você não liga para a estranheza.

Você tenta segurar o desejo de tocar a barriga dela. Até que ela pede que você se aproxime e não só coloque as mãos, mas também encoste o ouvido nela e ouça o que o bebê tem a dizer. Nada memorável, sá as baboseiras que um bebê poderia dizer.

Abraçado à barriga dela, você pergunta de quem é o filho. "Seu". E é o momento mais erótico da sua vida.

Mesmo que você não lembre de ter fodido aquela mulher.

9.12.02

Girls as a Memetica Infection V
em 09.11.02

Tudo se tornava ficção com ela por perto.

Era assim que se sentia, depois de ter fugido da ex-namorada e começado - em passos decididamente hesitantes - a se aproximar da garota da estação. Claro, a energia que aparecia do nada a cada nova paixão era um fenômeno conhecido e recorrente. Mesmo que há anos não tivesse uma paixão - ou princípio de paixão - sem culpas, ainda se lembrava bem como eram essas coisas.

E, com ela, tudo era diferente. Ao contrário de todas as outras que, independente da intensidade, o colocavam num estado propício à inspiração, mas que no fim das coisas só dificultavam o trabalho fundamental a qualquer escrita que prestasse, ela tinha um efeito diferente. Era como se as histórias já saíssem dela prontas. Como se ele só estivesse anotando algo que - discretamente - ela ditava nas ações, olhares e gestos.

A impressão era essa, mas sabia que quem escrevia era ele. As palavras vinham fáceis como nunca antes, mas eram palavras dele. Reconhecia suas frases, pausas e manias sem sentido. Mas percebia algo novo ali: a confiança de ter uma fã que de fato apreciava os escritos, não o escritor.

Ainda se sentia estranho com a facilidade que as coisas aconteceram. A velocidade absurda que, mesmo na época, a intimidade entre os dois se estabelecera. Hoje, com a consciência de que não poderia ser de outra forma, se perguntava como podiam prever um encaixe tão perfeito ao crià-la. Sabia que não era um alvo específico e que - se não estivesse naquela estação - ela encontraria outro como ele antes do fim do dia.

Por coisas assim que ia perdendo a fé na individualidade, subjetividade, no "único humano de cada um" como dizia um amigo "conectado ao universo". Depois dela, ficava imaginando quantas formas possíveis existiam e quão raro era o molde do seu tipo. Mas - na época - se sentia único e necessário. E mais talentoso e competente do que realmente podia ser.

Foi nesses dias que - estimulado por ela - começou um primeiro romance, que nunca pensou que ia funcionar, mas funcionou. Apesar de muito distante dos dias que vivia, a história era de uma honestidade incrível. Estavam lá expostas as possibilidades que passavam por sua cabeça se nunca tivesse visto a menina na estação. O cinza nas coisas, a lentidão das horas, a falta de sentido e os dinossauros.

Morria de medo de dinossauros, então transformou todas as idéias que o incomodavam em dinossaurinhos mal domesticados que ficavam enchendo os protagonistas. Como aqueles anjos e diabos dos desenhos animados, mas com mordidas e venenos em lugar de palavras.

Se sentia orgulhoso da idéia e mais ainda da forma de desenvolvê-la, que impediu que o romance se tornasse um drama insuportável ou que caísse na tão irritante biografia mal disfarçada. Ainda assim se sentia excessivamente exposto. Em outros tempos, os dinossauros o protegeriam dos olhares curiosos. Roubariam o foco das suas inseguranças para a metáfora palhaça.

Mas ela identificou seu medo de perdê-la assim que o primeiro tiranossauro apareceu.

2.12.02

Diálogo Recursivo III - Déjà Vu
em 02.12.02

- Você quase não fala mais comigo. Antes, era tão falante. Tagarelava sem parar, sempre com um comentário, uma piada, uma provocação. Tem algo errado com a gente?

- Não. Só tenho menos a dizer. Perdi um pouco a vontade de falar.

- É?

- Não há mais nada que você não saiba.

- Há muita coisa que eu não sei. Não sei mais o que você está pensando, em quem está pensando. Ou como está pensando.

- Seria óbvio, se prestasse atenção.

- Prestar atenção no quê? Você não me diz nada! Passa o tempo todo naquele quarto, lendo. Ou escrevendo e rabiscando coisas para o filme. O máximo que me diz é que vai viajar não sei pra onde, que saiu tal dinheiro ou me mostra algo que fez. Nada sobe você!

- Desisti de falar de mim quando você começou a esquecer.

- Eu nunca esqueci nada do que você me disse.

- Esqueceu. As menores coisas. As que mostravam que você prestava atenção.

- E, em vez de me lembrar, você desiste de falar?!

- As coisas em si não eram importantes, mas era importante que você lembrasse.

- Às vezes você é insuportável! Se as coisas não eram importantes, por que é importante que eu lembre delas? Por que você não me fala mais nada sobre as coisas que são importantes, diabo?

- Porque eu não preciso falar para você sobre o importante, as coisas grandes. Eu falo delas o tempo todo. Penso nelas o tempo todo. Basta entrar no quarto, ver as orelhas dos livros. Prestar atenção no que estou fazendo.

- O que você faz não tem nada a ver com a gente. Aliás, não tem nada a ver com mais nada. É só um amontoado de idéias sem sentido, cenas pela metade, umas coisas que não se completam. Nada com nada! Cada vez mais chato, mais arrastado, mais distante de tudo, fechado em si.

- Eu só escrevo sobre nós dois. Antes você sabia disso.

15.11.02

Girls as a Memetic Infection IV
em 15.10.02

Estranho que os sonhos só começassem a desenovelar agora, tantos meses depois. Percebia que ela não era tão perfeita assim. Tinha pelo menos esse defeito de fabricação. Os sonhos - implantados pouco a pouco - deveriam ter explodido no instante que decidiu deixá-la.

Talvez fosse melhor tê-los enfrentado na época, quando todos os outros problemas afloraram e estava contaminado dos memes dela ao ponto de não poder ouvir nenhuma música, andar por quase todos os lugares ou pronunciar a maior parte do seu vocabulário de três línguas. Conseguira de tal modo amarrá-lo que nada podia ser feito sem se esbarrar em alguma idéia semeada por ela.

Mas os sonhos teimavam em aflorar agora. Sem motivo aparente. Quando achava que estava se livrando das idéias dela - ou que elas estavam diluídas além de uma percepção consciente, mesmo que ainda estivessem ao fundo de todos os seus raciocínios de uma forma que nada tinha de natural.

Tivera que ir embora antes, para um país estranho que nunca teve vontade de morar, inventando um projeto para o qual não estava qualificado ou tinha interesse. Aprender mais duas línguas e um outro alfabeto. Ler todos os autores que nunca teve tempo ou desejo e assistir grande parte dos arquivos de propaganda comunista. Tudo para afogá-la.

Sabia que não tinha conseguido. Mas - ao aumentar o número de possibilidades e interações na sua mente e sua literatura - era menos provável encontrá-la em seus devaneios. Era disso que tinha medo de fato, já que a possibilidade de um encontro aleatório era quase nula: ela nunca o procuraria de qualquer outra forma. E agora os malditos sonhos. Recolocando tudo de volta na moldura criada por ela. Fazendo as novas idéias caírem para sua esfera de influência. Desfazendo as defesas que ele tinha criado.

Ainda gostava - e precisava - falar dela com alguma freqüência, mas conseguia controlar as linhas de raciocínio. Como se dividisse os pensamentos em duas partes: uma ia na frente, guiando a outra para longe das áreas que dariam idéias para escrever. Se era isso que ela queria dele, era isso que nunca mais teria.

Ainda não tinha conseguido se convencer - e os sonhos dificultavam ainda mais - que era só isso que ela queria. Mesmo agora, se prendia à esperançaa fútil que as idéias e textos fossem só o rumo geral que a programaram para tomar. Tentava se convencer que ele era dispensável, só um veículo para o que ela precisava. Mas não conseguia.

Mesmo agora - depois de tudo - ainda se sentia mais idéias que corpo. Ainda sentia o orgulho de lembrar dela chorando com as palavras que criou para que chorasse, ou largando um texto incômodo onde previa que ela o faria. Eram as idéias que ele amava que ela amasse.

Enquanto não se livrasse disso, ainda seria dela.

2.11.02

Escritores são um porre e falam uma língua bastante particular, mas às vezes é divertido escrever sobre eles. Reúni as três partes de Pulp Hack em um negócio que pretende ser impresso. Se você quer uma cópia, me escreva com seu endereço postal.

As pessoas que pediram o segundo número do Aoristo receberam - ou devem receber até terça - um envelope que também tem Pulp Hack. Se você pediu e não receber até lá, me avise - e mande seu endereço de novo.

Os três zines estão disponíveis na rede, corrigidos e iguais as versões distribuídas.

29.10.02

Parábola III
em 22.10.02

Havia, no tempo em que céus e terras ainda não eram bem separados, um dragão enlouquecido. Nascido já adulto das pinturas de Chang Seng-Yu, faltava-lhe a sabedoria e comedimento de seus pares. Se comportava como uma criança, com o poder para mover céus e terras.

Era necessário prendê-lo novamente na pintura. Bastaria que alguém conseguisse roubar sua pérola e ordenasse que ele retornasse ao painel de onde nascera. Tarefa simples para um exército, mas eles estavam envolvidos em uma guerra distante.

Sobravam apenas alguns guerreiros esparsos, que passavam seus dias orando que o dragão nunca se aproximasse de sua cidade. Orar, afinal, era muito mais eficiente que atacar a fera brincalhona.

A situação progrediu por meses, até que um guerreiro desertor voltou das batalhas. Não podendo mais viver com a agonia de sua vergonha, decidiu que subjulgaria o dragão.

Atacou a criança de forma traiçoeira, num conflito breve, que terminou com um simples olhar da criatura.

Transformado em névoa, o guerreiro cumprira seu objetivo.

28.9.02

25 Fatos Inventados - e Não-Contraditórios - Sobre Mim Mesmo
Em 28.09.02

1. A data do meu aniversário foi escolhida por conveniência política.
2. Eu nunca minto. E estou sempre certo.
3. Fui abduzido aos 10 anos de idade. Antes disso, eu tinha dois redemoinhos no cabelo. Hoje, não tenho nenhum e não consigo me lembrar do nome de nenhum dos meus amigos de infância. Ninguém acredita em mim, mas é verdade.
4. Não durmo direito desde a primeira - e única - vez que pulei de pára-quedas, em 1998. Tive problemas para abrir o negócio e sempre sonho com a situação. O resultado é diferente do que de fato ocorreu.
5. Parei de comer carne de porco quando vi "Babe".
6. Eu nunca me apaixonei.
7. Meu livro preferido é "Cem Anos de Solidão".
8. O primeiro livro que ganhei foi "O Pequeno Príncipe", logo depois de nascer. Antes de ultrassonografias para determinar o sexo do bebê serem comuns, minha avó materna estava certa que eu seria uma menina. Apesar de me recusar a devolver quando minha primeira prima nasceu (eu tinha dez anos), até hoje não li o livro - uma ediçãoo muito bonita, em francês.
9. Perdi minha virgindade aos catorze anos. Ela tinha trinta e era amiga de uma tia. Ela não me beijou.
10. Meu primeiro beijo foi aos 17. Acho que gostei mais dele que da "primeira vez".
11. Eu não me entendo com computadores.
12. Meu incisivo frontal esquerdo e o lateral direito são próteses. Bêbado, fui defender uma garota em um show. Depois da briga, tentei beijá-la e ela me empurrou. Bati a boca na calçada.
13. Apesar de já ter sido preso por vandalismo, eu nunca roubei.
14. Tenho medo de lagartixa.
15. Uma vez, viajando de carro, meu pai ficou detido por horas. Ele carregava uma arma, mas esqueceu o porte. Eu, minha irmã e minha mãe ficamos horas esperando no carro atá que a coisa fosse esclarecida.
16. Eu sei dançar tango.
17. Eu bebia desde de cedo e tinha certeza que ia ganhar um carro quando fizesse dezoito anos, então nem me preocupoava com isso. O que eu realmente esperava era fazer dezoito anos logo para poder disparar uma arma. Exigência da minha mãe que eu esperasse até então.
18. Minha matéria preferida na escola era matemática. Estranhamente fui fazer odontologia. Até hoje dá vontade de largar o curso para ser engenheiro.
19. A coisa mais triste que vi na vida foi uma amiga minha depois de fazer um aborto. Eu disse para ela que admitiria o filho, mas ela não acreditou.
20. Quando eu era criança queria ser padre, jogador de futebol ou piloto de avião.
21. Loiras - mesmo as oxigenadas - fazem muito mais o meu tipo que as morenas. Se forem bem bronzeadinhas, então...
22. Minha mãe e meu pai se separaram quando eu tinha quinze anos. Eu fiquei morando com meu pai.
23. Eu bati o carro uma vez. Voltando de uma festa, dormi no volante. Não aconteceu nada comigo, mas foi perda total.
24. Eu nunca quebrei um osso.
25. Quando eu jogo futebol, gosto mesmo é de ser goleiro.

13.9.02

Diálogo Recursivo II - Delectatio Morosa
em 13.09.02

- Gostou?

- Já estou de saco cheio dessas coisas. Desses joguinhos pós-modernos.

- Ah! O filme é legal.

- Mas é só tirar a montagem, o jeito de narrar, que você tem um filme comum. Igual a um monte que eu já vi sem nem prestar atenção.

- Mas o modo de narrar é o filme! Se você tirar o modo de descrever as coisas Shakespeare é pior que qualquer novela das seis!

- Você sempre tem que radicalizar. Odeio quando você faz isso!

- Que radicalizar?! Você tentou fazer uma distinção entre o modo de narrar e o filme. Só quero mostrar como isso é impossível.

- Não venha me dizer o que eu tentei dizer ou fazer. Toda vez que a gente conversa é isso. "Você disse isso". "Você tentou aquilo". Já encheu o saco.

- Tá. Tá. O que você quis dizer, então?

- Que, se tirar o modo de narrar, o filme é igual a um monte de outros que já vi.

- Caralho! Não foi o que eu disse que você disse?

- Não. Você disse o que eu queria dizer. E errou.

- O que você queria dizer, então?

- Que eu queria uma história simples.

- Como "simples"?

- Sem complicações. Bonita. Que me envolvesse.

- Você ainda está falando do filme?

- Ah! Sei lá.

26.8.02

Girls as a Memetic Infection III
em 26.08.02

Tinha que aceitar os fatos. Estava apaixonado.

Chegou à desagradável conclusão dois minutos depois do primeiro telefonema, sem muito se debater, poucos dias depois de vê-la pela primeira vez. Se fosse mais sincero, ou não cultivasse com tanto esforço uma camada de cinismo anti-romântico, aceitaria a situação ainda no primeiro dia, quando tudo que viu o lembrava da menina que acabara de encontrar. Só havia um detalhe a cuidar antes de poder se perder nela.

Hoje ele pensa que poderia ter se defendido. Mas os tempos eram outros, apesar de nem tão distantes. Na época, memes – “idéias como vírus”, frase que já tinha visto uma ou duas vezes – pareciam ridículos: mais ficção científica que uma possibilidade real. Mas naquele momento as coisas começavam a se confundir.

Não estava preparado quando a viu pela primeira vez. Não tinha nenhuma defesa ou vontade de se defender. Não existiam os manuais de segurança psíquica e muito menos as técnicas de combate memético - ou M2M, nos círculos que freqüentaria alguns anos depois, ao tentar se livrar dela.

Não pensou em se esconder ou fugir – o procedimento padrão quando não estava solteiro. Ao avistá-la na estação, já sabendo o quanto se sentiria mal, se aproximou sem pensar para observá-la. Ela, ao identificar um dos alvos programados, deu a ele uma única chance de escapar e baixou os olhos em vez de sorrir. Um gesto de piedade atípico, como ele descobria pouco depois.

Ele ainda pensa se, caso não fosse criada para aquele target, ela teria olhado para ele uma segunda vez. Era o tipo de pensamento que devia se concentrar para evitar agora. O tipo que ela foi criada para causar.

Seis minutos de conversa com as palavras sumindo nos trens e pessoas foram suficientes. Tudo que ela dizia se encaixava perfeitamente em algum lugar, fazia com que ele sentisse enormes possibilidades em si, como se tivesse recebido uma injeção de idéias. Estava tão envolvido que não lembrou os motivos para se sentir culpado ao pedir o telefone dela, certo que o número não tocaria em lugar algum.

Em casa, ignorou os recados e os compromissos: escreveu durante todo o fim de semana, como há muito não conseguia ou tentava fazer. Percebeu, ao revisar as histórias, que nenhuma delas era sobre a menina na estação. Todas eram sobre fins. Juntou todas num e-mail, escreveu “sinto muito” no cabeçalho e enviou para a – a partir daquele momento ex – namorada.

Discou o número. Ouviu que ela estava viajando, tirou o telefone da tomada e voltou a escrever.

(continua)

7.8.02

Girls as a Memetic Infection II
em 07.08.02 - (com meus cumprimentos a Grant Morrison)

Achavam que era amor. Mas não passava de ficção científica. Não que se pudesse notar a diferença. Essa era a idéia desde os planos, quando foi pensada para ser uma musa.

A idéia de criá-la foi de um diretor num departamento literário de um desses complexos de entretenimento. Sua linha de trabalho não permitia que criasse uma única “estrela”. Mesmo com a mudança de foco cada vez mais acentuada dos escritos para o escritor, vender livros ainda não era a mesma coisa que vender um filme ou a mais nova banda de J-Pop. Ter a aparência e estar carregado dos memes corretos não adianta muita coisa quando a maior parte do trabalho é feita num quarto fechado.

As técnicas do engenheiros meméticos eram muito eficientes em criar hype, mas não funcionavam muito bem para escrever livros. Individualmente, cada uma das idéias circulava bastante. Só que a história não funcionava e isso era tão perceptível que os memes nem chegam a se multiplicar. Pior ainda: eles ganhavam – como são criados para fazer – vida própria e deixavam o livro para trás.
O tal diretor percebeu o que eles precisavam: um meme que atraísse escritores.

Na verdade, um único meme não iria funcionar. Depois dos cursos de escrita de ficção, normalmente vinculados aos de crítica literária, qualquer escritor que juntasse três sentenças direitinho era capaz de desmontar um único meme em segundos. Além disso, técnicas de defesa memética começaram a se tornar corriqueiras justamente entre o perfil de consumo dos escritores.

A solução para o problema era clássica: o Cavalo de Tróia. Os memes viriam embalados em algo indispensável. Nem foi preciso pesquisa de mercado para decidir qual seria o veículo.

Claro, as primeiras meninas levariam anos para ficar prontas – no mínimo uns 15, com tratamentos hormonais e tudo. Mas, se as coisas dessem certo, elas seriam as máquinas perfeitas para identificar escritores e poetas. Além, de um jeito ou outro, garantir suas fidelidades aos seus editores.

Em retrospecto, tudo foi muito mais simples do que deveria ter sido. Não foi mais complicado criar as dez meninas do que seria criar qualquer outro grupo de crianças. O isolamento relativo no qual elas cresceram ajudou, do mesmo modo que as técnicas roubadas do exército, e a seleção dos embriões com as características desejáveis evitou revoltas ou tentativas de fuga. Afinal, elas não sabiam muito bem o que era planejado para elas.

Neurolinguística. Técnicas de meditação. Etiqueta corporativa. Mensagens subliminares. Tantra. Semiótica. Modulação de voz. Dança. A dose certa de musculação. Os cuidados com a pele. As experiências certas nas ruas. As memórias implantadas de estupros e paixões não correspondidas. As doses certas de Sol. Futilidade planejada. A quantidade exata de atenção e indiferença...

Milhares de anos de pesquisa. Milhões de dólares em tecnologia. Tudo para criar uma tropa de meninas fofas.

Os coitados não tiveram nenhuma chance.

(continua)

5.8.02

Fragmento a ser encaixado em algum lugar
em 05.08.02

O problema em transformar biografia em ficção é que a realidade é muito mais recursiva que qualquer história. Cedo ou tarde, o autor se vê novamente em algo escrito por ele e, em lugar de viver o momento, pensa em revisar os escritos.

31.7.02

A Verdadeira Origem da Internet
em 31.07.02

Um dia um general se fez a seguinte pergunta:
-Se tiver uma guerra nuclear, vamos ficar presos aqui sem mulher. Não passará muito tempo e nossa pornografia estratégica será totalmente consumida pelo uso. Como podemos resolver esse problema?

O resto vocês já sabem.

19.7.02

Girls as a Memetic Infection I
em 26.06.02

“Você tem que esquecer essa mulher.”

Já estava cansado de ouvir a frase. Amigos, pais, conhecidos e amigas disponíveis e dispostas não cansavam de repetir o que ele já sabia. Mas não era só a repetição que incomodava. O fato é que esquecer a tal mulher não era nada simples.

Não era culpa dele, do seu comportamento obsessivo e muito menos de paixão. Era uma constatação simples e óbvia a respeito dela e do efeito que ela fora planejada para causar naquela fatia do mercado na qual ele se encaixava. Mais que uma pessoa, ela era um meme.

Chamá-la de meme era a maneira preferida dele falar sobre quem tirava seu sono por esses dias. Principalmente pela economia: grande parte do seu círculo já estava familiarizado com o termo e suas implicações. Cerca de metade das pessoas que diziam para ele sair, ver um filme, ficar com outra – enfim, pensar em outra coisa – balançavam a cabeça para o que acreditavam ser uma desculpa esfarrapada. Uns poucos, que acreditavam e não se interessavam por esses assuntos, misturavam pena à reprovação.

Outros – principalmente seus pais – debochavam da idéia. Perguntavam seguidamente o que é esse negócio de – “como é mesmo, meu filho?” – meme, preferencialmente naquelas reuniões familiares chatas a que era obrigado a comparecer. O chacoalhar de cabeças após as explicações era o mesmo, quase sempre seguido de algum comentário sobre como esses jovens ficam inventando nome novo para tudo.

Os poucos que sobravam eram seus preferidos. Eram aqueles que entendiam dessas coisas e faziam a pergunta que ele se coçava para ouvir: “como assim?”. Mesmo com a repulsa profunda que sentia por si mesmo ao se transformar num marionete das idéias que a construíram, era um prazer imenso falar sobre ela. Os participantes ligavam suas semióticas, estéticas, psicologias e teorias da percepção, enquanto em algum lugar um engenheiro memético gritava bingo.

Mesmo longe ela continuava se espalhando. Era uma obra-prima.

(continua)
Diálogo Recursivo I
em 19.07.02, com desculpas a todos os envolvidos

- Nem tudo é biografia, sabia?

- Como se nada fosse...

- Muito pouco é. E nunca é a melhor parte. As coisas interessantes são interessantes de serem vividas, não necessariamente narradas. Soam clichê, remix, dèjá vu...

- Você não fala de outra coisa a não ser de nós. Mesmo quando não fala de nós, está falando. Está lá: mas elipses, na frase quase dita.

- Eu não falo de nada além de mim. Você é ocasional. E você deveria me conhecer melhor. Você sabe o que está acontecendo. Sempre sabe. Ou eu pelo menos espero que saiba. Sou muito claro e óbvio para você. Ou me sinto assim, pelo menos.

- Há muito tempo você não é claro para mim. Queria que ainda fosse.

- Eu não. Detesto a sensação de estar em suas mãos. Queria que você ainda entendesse, mas gosto de sua incerteza. Da simetria.

- É difícil não ler aquilo que você escreve como biografia. É estranho aceitar que as histórias vêm do nada.

- Não vêm do nada. Vêm de outras histórias, de idéias que circulam, das frases que ouvi.

- E por que todas elas se parecem? Por que todas me dizem algo sobre você?

- Porque eu escrevo sobre mim, de uma ou outra forma. Biografia é a menor das preocupações. Você já devia saber que o importante é o imaginário, não os correlativos objetivos. Os eventos que aconteceram ou deixaram de acontecer são só circunstanciais.

- E como vou saber quando são só idéias ou ser algo realmente aconteceu?

- Basta perguntar.

- Isto aqui aconteceu?

- Mais ou menos. Quem se importa? Agora é ficção. Nem eu, nem você, nem ninguém participou desta conversa.
em 19.07.02

Álcool
em 23.10.01

Era o momento de decidir como enfrentaria a crise que se apresentava. Uma crise menor - já havia passado por outras bem mais graves antes e sabia disso -, mas uma crise de qualquer modo. E era ali, na frente da cristaleira cheia de bebidas que tinha que decidir como lidaria com os eventos recentes. Uísque ou vinho?

A decisão mais importante já havia sido tomada. Na verdade, nem era uma decisão. Era mais um hábito: se embebedar era quase uma obrigação após cada decepção amorosa. A questão era que tipo de bebida tomar. Isso determinava todo o resto.

A avaliação era feita a partir de uma série de variáveis mais ou menos objetivas que incluíam desde o estoque de bebidas no bar até o que realmente acreditava que sentia pela decepção em questão.

Para o caso em questão, inicialmente, pensou em beber martinis - que queriam dizer que ele ligaria para um daqueles interesses recorrentes e em recorrentes suspensões, procurando se consolar e fazendo de conta que as semanas anteriores não importavam nada. A trilha sonora seria cool jazz. Desistiu ao perceber que a vodka na garrafa não daria para mais que um drink e teria que mudar tudo - sentimentos, músicas e roupas - ou sair para comprar mais. Ambas as idéias pareciam igualmente repugnantes.

As escolhas, então se reduziam a duas: Uísque ou vinho?

11.7.02

Pulp Hack III
em 03.07.02

Encarando a fotografia emoldurada, percebeu que a culpa por não ser pulp era dela. Não da foto, mas na mulher nela. Pelo menos nisso era noir: a culpa de sua desgraça era de uma mulher. Nada mais apropriado que ela ser sua namorada e amor da sua vida no momento. Era culpada, mas não o suficiente.

Ela era linda, o escritor tinha que admitir dando uma tragada mais profunda nos cigarros caros cigarros baratos corretos e preparava-se para outra dose de autopiedade. Mais que linda, ele acredita que ela era perfeita, mas não do jeito certo. Depois de muitos erros, tinha finalmente acertado. Pelo menos era nisso que queria acreditar, examinando de longe a pilha de cadernos baratos cheios de poemas e letras e músicas da pomposa dor adolescente que ele relutantemente deixava para trás.

Olhando os cadernos e pensando na tranqüilidade que ela causava, se perguntava por que as coisas tinham que dar tão certo agora. Precisava de uma desilusão adolescente, de uma paixão sem parâmetros. Daquelas que duram as três semanas que precisaria para escrever um romance. De preferência envolvendo uma loira macia, alcoólica, com algum plano secreto incompreensível, mas que sem dúvida nenhuma envolve você e alguma vingança. Ou aquele outro tipo clássico, lânguida, pálida e frágil, mas que domina todos os homens ao redor sem fazer muito esforço.

Era de uma dessas que o escritor precisava para ser pulp. Uma mulher que causasse agonia e infelicidade. Ele precisava ser misógino - palavra que só Marlowe, entre todos os detetives, conheceria. E não importava quanto whisky barato bebesse, não ia conseguir isso. Abaixo dos trópicos, o ódio às mulheres vinha com pinga, desemprego e sinuca. E desses nenhum combinava com o noir que precisava escrever.

Claro, podia mudar dali. Deixar a mulher que atrapalhava sua infelicidade para trás. Ir para uma cidade mais urbana, mais plana e com o mais sujo. Mas - tanto quanto o medo de ficar sem ela - eram as dúvidas se isso funcionaria. Claro, beberia muito - até gim, quem sabe - mas sabia que a ausência dela seria uma mudança de foco. Ele precisava temer uma mulher, odiá-la ao mesmo tempo que a desejasse. Tinha certeza que dela só sentiria saudades.

E nem a pau iria voltar para aquela choradeira indie.

10.7.02

Luto
em 06.06.02

“Agora que tudo começa.” Era só isso que conseguia pensar ao chegar na casa mais vazia que o habitual. Depois de tudo feito, todas as providências tomadas, o instante em que abriu a porta e não sentiu nenhum movimento lá dentro. Ali tudo começou a pesar.

Não sabia por que voltara para lá. Não entendia por que não ia embora. Uma esperança vaga que não fosse tão difícil quanto sabia que seria, uma ilusão de que ainda estaria ali. Ilusões que se desfizeram ao abrir a porta.

Estava acostumado a ficar sozinho, ao silêncio. Passava dias sem falar com ela. Não tinha motivos: a vida passava sem acontecimentos. Mas sabia que ela estaria ali quando algo acontecesse, quando tivesse uma história para contar, ou precisasse de um olhar de carinho ou reprovação.

Mas transformaram tudo em impossibilidade.

4.7.02

Pulp Hack II
em 01.07.02

O escritor pensava, enquanto tentava se levantar, em como era difícil conciliar seus desejos e gêneros literários. Queria ser pulp, não tinha dúvidas disso, mas faltava a inspiração adequada. Claro, tinha a cidade sórdida e corrupta à vista sob sua varanda, mas não se sentia tocado pela sordidez. E não era só pela altura do apartamento ou dos muros que o cercavam. Podia ver a cidade nua, mas como um voyer, Nunca com um participante. Claro que foi isso que o tornou um escritor, em primeiro lugar.

"Não é assim que deve ser", concluía, enquanto cuspia os restos na boca nos menos afortunados na calçada. Sua relação com as distâncias eram complicadas. Tentava colocar espaços entre ele e tudo aquilo que escrevia, ao mesmo tempo que se esforçava para abraçar os simulacros absurdos que construía ao seu redor. Afinal, sua cidade não era nem Los Angeles nem Nova York. Não tinha nem de longe o estilo necessário: ninguém nesse buraco tomava martinis ou bourbons. E noir com cachaça não dá.

Mas seu maior problema era de outra natureza.

Queria ser pulp, queria ser barato, mas mesmo com a cabeça martelando na ressaca e os dedos doloridos da máquina de escrever, não conseguia se sentir assim. Perdido sua reencenação de Pierre Mainard, não conseguia entender as razões enquanto vasculhava suas estantes. Tudo que deveria ler estava lá, devidamente lido. Todos os escritores que sobreviveram, todos os escritores que eles leram. Até os livros com cada fotograma de Casablanca e O Falcão Maltês. Mas faltava alguma coisa que não conseguia determinar.

Foi ao acender o primeiro cigarro, sentando em frente à máquina, que percebeu a fotografia sobre a mesa.

29.6.02

Parábola II
Em 29.06.02

Quando os animais ainda se dignavam a falar com os homens, um monge ouviu do tubarão o segredo para a felicidade. "Nunca pare de nadar. Assim será forte." Percebendo quão sábio era o conselho do peixe, decidiu que não dormiria duas noites em uma mesma cama. E pôs-se a andar.

Passou por muitos lugares, não se afetando por climas ou pessoas, até que seu caminho o levou a uma caverna. Percebendo que não havia outro caminho a não ser aquele já trilhado, ele decidiu explorá-la.

A caverna parecia não ter fim. Se estendia para sempre em profundidade, complexidade e beleza. Passou anos ali, cumprindo seu voto ao mesmo tempo criava um lar. Até que percebeu-se envolvido num canto vago que o chamava para fora da caverna.

Sabendo que ainda tinha muito a explorar e tentando ignorar as belezas da caverna, saiu. E viu as estrelas que tanto sentia falta. Examinou cada constelação até que o sol as expulsou do céu.

Pôs-se a andar de volta para a entrada da caverna. Parou, atingido pela idéia de que dormiria nos mesmos lugares de antes. E concluiu que não poderia mapear a caverna que tanto amava até que conseguisse ignorar o canto das estrelas.

E amaldiçoou sua dualidade.

9.6.02

Ela nos Livros
em 02.06.02

A ausência dela está por todos os lugares. Nos espaços que ela deveria ocupar e na maior parte daqueles onde não esperava sentir a falta. Quase todos os espaços. Inclusive meus livros.

Nada mais natural. Nos cinco anos de convivência – mais ou menos intensa – os livros foram uma parte importante.

Desde minhas primeiras tentativas de aproximação (me escondendo por trás de histórias em quadrinhos), passando pela maioria dos meus presentes, diversos livros desempenharam um papel significativo. Uma forma de chegar mais perto, de dizer algo ou simplesmente um motivo para ligar quando motivos para ligar eram importantes.

A presença dela não está só nos livros que ela me deu, ou nas dedicatórias. Ela se espalha por quase todos. As marcas estão no livro que ela leu ao meu lado enquanto eu dormia durante um fim de semana especialmente tranqüilo. No livro que ela achou estranho que eu comprasse. Naquele – emprestado – que deixei na casa dela junto com uma flor. No que comprei para lermos juntos e sequer abrimos...

Mais que os filmes, mais até que as músicas. Cada livro mais triste para mim pela distância dela. E todos melhores por ela ter estado aqui.

21.5.02

Mantra 2
em 21.05.02

Tudo é ficção. Nem tudo se presta à ficção.
Mantra 1
em 21.05.02

I can't write for shit.

8.5.02

Formatura
em 08.05.02

- Então é isso.

Ela não conseguia pensar em mais nada enquanto passeava pelos corredores do prédio quase vazio. Se procurasse um pouco mais, chegaria à conclusão que o que pensava de fato é "e agora?", mas escondia o medo do futuro em uma falsa saudade.

Na verdade, se importava muito pouco com o prédio, as pessoas ali ou os anos que passou lá. Sempre pensou naquele tempo ali como uma mistura de prisão e ferramenta para seus vôos futuros. E só. Não era nada simpático de admitir, então fazia de conta que ia sentir alguma falta de lá.

O pior é que, passando pelas pessoas que nunca julgou significantes, começava mesmo a sentir saudades. Não delas - ou das poucas que chegaram a ganhar nomes - mas da proteção do lugar. De saber que era melhor que os outros, de saber o lugar que estava na cadeia alimentar através da qual teimava em entender o mundo.

Passou tempo demais pensando em escapar para traçar algum plano. Agora se sentia desprotegida, desorientada e vazia.

O pior é que só conseguia pensar em uma saída: o mestrado.

30.4.02

Gentileza sob o Sol
30.04.02

Não consigo me livrar de você sob o sol. Por mais que tente, você contra o carro, o ar de desolação, o olhar no nada persistem. São a marca de um jogo encerrado. Ou outro – muito menos agradável – que começa. Você brilhando ao sol marcou o início do pior dos jogos: gentileza.

Sei que não era para mim que você estava lá. Que não era nenhum comunicado de fatos, mas a simples constatação de um estado em especial, sem se importar com quem assistia. Desolação ou vertigem, a razão não era importante. Mas era algo que não deveria ter visto.

Sabia que – de todos – era o único proibido de me aproximar. As regras da gentileza são muito claras, apesar de impossíveis de serem seguidas. Sufocar a curiosidade, ignorar a humanidade, tentar me desfazer do carinho. Fingir desprezar sua imagem sob o sol.

Tudo em nome do bom tom, do correto: das regras da gentileza.

15.4.02

Parábola I
Em 15.04.02

Há muito, Chuang Tzu tinha um discípulo que procurava no corpo a chave do espírito e na luta o caminho da paz. Ele sabia que estaria pronto quando fosse capaz de, com um golpe do seu punho, parar por um momento todo o rio Amarelo.

Chuang Tzu só permitiu a ele uma chance de tentar, pois sabia que o mundo não pode ser a vítima da vaidade do homem.

Depois de anos, o discípulo foi até o mestre, dizendo estar pronto para o teste. O mestre assentiu: ele estava pronto.

O discípulo andou até a margem do rio e desferiu seu golpe.

Nada. Era como se o golpe nunca tivesse sido recebido.

O discípulo foi até Chuang Tzu, sabendo que havia desperdiçado toda a sua vida. "Mas o senhor não julgou que eu estava pronto, mestre", foi a pergunta.

"Estar pronto não significa vencer," disse Chuang Tzu.

11.4.02

Reciprocidade
Em 11.04.02

Tudo que eu queria era reciprocidade.

De qualquer tipo, de todos os tipos. Claro que, inicialmente, dos sentimentos positivos. Reciprocidade de curiosidades, de olhares, de interesses. A ansiedade pelo momento em que ele me olharia como há tempos eu já o via em segredo. O processo lento de torná-lo meu, até que ele achasse que se apaixonou por mim – pela simplicidade sem sentido que ele teima em enxergar – e se aproximasse.

Foi assim que, por um tempo, aconteceu. Ele acreditou que tinha encontrado sua história simples : “menina conhece menino, menina se apaixona, menino se apaixona, felizes para sempre”. A história que ele tanto repetia para mim, como um elogio. Ele nunca soube, mas me ofendia a cada vez que ele repetia o slogan. “Nada demais”, dizia, no fim das contas.

Mas era recíproco. Ele me amava e era suficiente. Por todas as razões erradas, mas era o suficiente. Ele me amava por ficar quieta, por não entender, por cozinhar e mil outras coisa. Mas, mais que tudo, por deixá-lo em paz. Por não ser ela.

Hoje penso se não fiz e enxerguei tudo errado nele. Sempre busquei reciprocidade, manter os dois sem dívidas entre nós, sem raivas, sem nada que pudesse desfazer o equilíbrio. Demorei tempo demais para descobrir que ele não funciona assim. Que ninguém além de mim funciona assim. Quando percebi que estávamos perto demais de só existir indiferença, acabei com um saldo que acabou com tudo. Não consegui não sentir nada por ele.

Mesmo agora, quando não há mais nada, continuo sentindo coisas demais por ele. Raiva, saudades, pena... Até amor. E nada. Nenhuma reciprocidade.

Nem no telefone.
Perfil Pictórico
Em 11.04.02

3.4.02

Pulp Hack

Barato, barato. Como um romance de banca. Muito barato. Sujo e sujando os dedos, como todas as coisas que vendiam nas bancas de revista da cidade. Como a própria cidade. Era assim que o escritor queria se sentir, martelando na máquina de escrever. Nada de computadores. Computadores são limpos como hospitais, frios como a noite e várias outras metáforas que ele ficava tentando se convencer que eram verdadeiras enquanto os dedos doíam, nas pancadas fortes para compensar a fita gasta.

As coisas se complicavam ao se somar o whisky que teimava em beber para parecer mais barato. A bebida travava em sua garganta e dava trabalho de botar na garrafinha de metal, mas era isso que seus heróis dentro e fora dos livros bebiam e diziam beber. Não importava o preço. Pagaria o quanto fosse necessário pela bebida barata como as putas que ele pensava de modo meio distante em contratar algum dia. Já tinha até feito as contas. As putas baratas corretas iam custar ainda mais caro que a bebida barata correta. O vestido anos 40, o chapéu e os cigarros sem dúvida seriam cobrados como um fetiche.

Bebia, bebia e martelava na máquina. Tentava escorrer a consciência como o sangue e as metáforas baratas nas ruas da cidade nua. Mas não conseguia desligar suas neuroses pós-industriais. E o calor, que o fazia suar como um dedo-duro dentro da cadeia, como devia suar na Califórnia.

Martelava, prendia os dedos e dava ânsias a cada gole, mas não conseguia ser pulp. Era impossível ser barato. Conseguiu se escorar até o banheiro, se desviando das luzes que colocou pelo caminho para conseguir a iluminação correta. Vomitou e desmaiou ao lado da privada, sabendo que nunca seria pulp. No mínimo um Raymond Chandler.

E teria que viver com isso.
Digitais



Foto: Iuri Rubim




16.3.02

Perfeição
em 16.03.02

Eu queria perfeição.

Procurei tanto por perfeição, alguém sem excessos ou faltas. Para isso. O pior é que desta vez eu achei mesmo que havia encontrado perfeição. Ou, melhor, que experimentaria - possuiria - perfeição. E não posso reclamar que foi mais um engano. É a primeira vez que me decepciono assim. Um sentimento novo, pelo menos. Como se eu precisasse.

A idéia de perfeição sempre foi algo maior que uma preocupação. Ou foi minha principal preocupação. Desde que posso me lembrar, as fotos nas revistas de moda, nas propagandas de produtos de beleza, nas pinturas renascentistas... Tudo isso me causava uma angústia profunda. Estava certo que nunca me encontraria com aquela perfeição. Até porque nunca me iludi a respeito dos poderes de maquiagens e uma boa iluminação. Mesmo assim nunca me livrei da idéia de experimentar a perfeição. Não para mim, claro, mas em alguém. As pessoas perfeitas não são necessariamente as mais interessantes, pelo pouco que pude perceber nas poucas que conheci. Minhas imperfeições realçam meu caráter.

"Pessoas", como se fosse isso que me interessasse. É idiotice minha tentar me enganar, é de corpos que estou falando. A casca, a embalagem perfeita. Não é tão fácil de encontrar quanto parece à primeira vista. Corpos incluem rostos, vozes, posturas, maneiras de falar, tons, roupas. Variáveis demais para serem conseguidas em academias e caras demais para mesas de operações. A maioria das pessoas não quer perfeição, harmonia - mas o nariz da novela, a barriga da revista, as roupas da moda.

Na maioria das outras poucas vezes que encontrei pessoas perfeitas - e minha profissão se presta a isso - elas tinham um defeito que prejudicava suas posturas e vozes. Elas sabiam que eram perfeitas. Falavam alto demais, ou naquela voz pateticamente arroucada de quem quer seduzir todos ao redor, ficavam com o nariz empinado, atrapalhando a posição natural dos músculos faciais perfeitos. Claro, encontrei uma ou duas outras perfeições, mas elas não demonstraram interesse em minhas propostas veladas.

Até hoje não tinha encontrado a perfeição ideal - ignorante de si e disposta. Quando a encontrei, sabia que seria minha melhor chance, mesmo que levasse - como levou - tempo. Claro, a pele não era do tom ideal, mas era absurdamente bem feita e uniforme. Como vinil, o contraste ideal. E o tato correspondia.

Eu odeio saber que o toque final que me permitiu experimentá-la foi o que trincou sua perfeição. O braço machucado estava errado, algo que contaminou a pele de todo o corpo. Me preocupei mais em não encontrar outro daqueles que em sentir.

Claro que agora posso contar com replays, mas replays disso. Não há mais a possibilidade de perfeição aqui.

E eu queria só perfeição.

27.2.02

Bicicleta
Em 27.02.02

Eu queria uma bicicleta.

Papai Noel não existe. O homem na tv tá sendo preso por que disse que Papai Noel não existe e se Papai Noel existisse ele não ia preso, só ficava sem presente porque tinha mentido. Se Papai Noel não existe ele não vai preso porque não fez nada errado e a polícia não prende quem não fez nada errado e só que faz alguma coisa errada vai preso porque a polícia não é igual a mamãe, que brigou comigo e puxou minha orelha por que o vaso caiu no chão e quebrou e eu nem tava em casa e se estava, tava vendo tv quietinho e a gata que ela diz que não existe que deve ter quebrado se tiver alguém igual à mamãe na polícia nem dá pra saber se Papai Noel existe ou não.

Nem que eu quebrei o vaso. Papai Noel existe senão não tinha visto eu quebrando o vaso e tinha trazido minha bicicleta e não esses bonecos que são legais mas não são uma bicicleta e eu não posso andar na rua e depois tirar a rodinha e pular a rampa e andar com o José que é o menino mais legal por que é grande mas mesmo assim conversa comigo.

Eu só queria uma bicicleta. Mamãe me prometeu que Papai Noel trazia uma bicicleta se eu me comportasse vem, estudasse direitinho, tomasse banho escovasse os dentes e tudo isso. Daí eu fiz e no dia do Natal eu não ganhei a bicicleta, mas uns bonecos e uma roupa que me espeta todo e eu nem queria. Eu vi na tv que Papai Noel não existe, se existisse eu ganhava minha bicicleta e os bonecos e uma roupa que não pinica e não tem botão.

Não preciso mais me comportar se Papai Noel não existe. Só ele sabe de tudo a mamãe não só preciso fazer de conta na frente dela e quando ela presta atenção. Ela diz que o papai me vê o tempo todo lá de onde ele está mas se Papai Noel não me vê não é o papai que vai ver. Então eu posso fazer o que eu quiser se ninguém estiver olhando e ninguém vai me ver.

Vai ser legal fazer tudo que eu quiser se ninguém me ver fazendo mas eu queria mais a bicicleta e que Papai Noel existisse.


Em algum ponto de 2000


23.2.02

Digressões Sem Nicotina
Em 22.04.99

Mais uma vez, passei meu dia em casa.

Mais um dia pulando aulas, pensando sobre o tempo, lendo, brincando com imagens... Imagino a imagem de uma câmera além do teto do meu quarto me filmando: eu deitado na cama, de camisa regata, fumando. (Não que eu fume, use camisa regata ou mesmo tenha certeza de que o quarto e corpo na imagem são meus).

Me peguei, durante a tarde, ouvindo discos que não ouvia há algum tempo. E outros que ouço quase demais: o primeiro Garbage, Protection, Lost Highway, os três Cowboy Junkies e até um Suzanne Vega (e não o melhor deles).

Foi ouvindo “Light my Fire”, numa versão do Massive Attack que um pensamento que começou a se formar ontem se calcificou: as músicas que eu amo nos discos raramente são as por quais me apaixono à primeira vista (à perpétua exceção de “The Perfect Drug”).
Troquei “Only Happy When it Rains” por “Fix me Now”. “Teardrop” por “Inertia Creeps”, “Head Like a Hole” por “Down in It”. E, apesar de muitas vezes me esquecer de ouvir “Common Disaster”, paro tudo para ouvir “Bea’s Song” (btw, com licença).

(retornando...)

Esse tipo de bobagem me fez, sei lá por que razões, refletir sobre que coisas vão se tornando permanentes em nossas vidas (mais especificamente, em minha vida). As coisas mais improváveis. E raramente aquelas que esperamos.

Eu esperava ainda acreditar piamente na Ciência, ainda ser amigo de determinadas pessoas, ainda usar cabelo comprido (idéia que hoje coça)...

E esperava já ter me despedido do tesouro sob minha cama, ter esquecido quem é Neil Gaiman, não mais ver Salvador À Noite. E definitivamente, não esperava ver as fuças de alguns de vocês depois de quase (ou mais) de dez anos.

E o que espero hoje? Fingir que sou outra pessoa em alguns sábados por mais dois ou três anos, esperar ansiosamente cada encomenda de quadrinhos por mais umas duas décadas, me formar algum dia...

Não ouso imaginar muito além disso. Não consigo me imaginar sem óculos ou empregado corretamente. Não consigo imaginar meu rosto ou roupas em três anos. Não consigo imaginar nenhum panorama plausível para mim, nem identificar minha cena obrigatória.
Fico pensando em qualquer mundo viver. Eu, imóvel em mim, em vários mundos.

Por que diabos é mais fácil imaginar mundos que nós mesmos?

Às vezes acho que deveria fumar. Mentolados são melhores que pensamentos.

20.2.02

Algodão Doce
Em 20.02.02

Eu só queria era um algodão doce.

Um pouco de açúcar para me animar. Esquecer um pouco da dieta e da alimentação correta. Ando tanto precisando me animar... Salada e peixe grelhado são ótimos; ver a barriga lisinha também – ou tão lisa quanto pode ficar. Pra depois ouvir uma história de simplicidade. Fica sempre faltando alguma coisa. Não é nem o sabor ou o dulçor, é mais a animação.

Dá pra perceber que quem me olha pensa o mesmo que eu: que algodão doce é coisa de criança. Que uma senhora de quase trinta não devia mexer com essas coisas. Dane-se. Eu queria algodão doce justamente por ser coisa de criança. Doce, colorido, impressionante e vazio. Calorias vazias, melhor. Quando eu era criança eles não eram tão grandes assim. Mal comecei a comer e já estou com sede, cansada. Mas não quero água. Quero aquele restinho que fica grudado no palito. Por que não para de me olhar? Ninguém mais entende o prazer de um algodão doce.

Algodão doce é bem melhor que chocolate. Chocolate é coisa de mulher largada, de trintona triste e me nego a assumir qualquer um dos dois papéis. Ficar assistindo filmes água com açúcar e chorando na frente da TV, bebendo vinho por faltar coragem pra beber algo que funcione... Tudo muito clichê. Se é pra encher a cara de açúcar, melhor algodão doce. Muito mais divertido, muito mais simples e bem menos arriscado. Afinal, cedo ou tarde o vendedor vai ter que ir embora. Eu podia passar a noite toda comendo chocolate. Mas depois de um algodão doce quem é que vai querer saber de açúcar?

Esse negócio dá mais sede do que eu lembrava. Também, deve ter quase dez vezes o tamanho do último que eu comi. Aliás, quando foi isso? Deve ter mais de dez anos, eu nem estava com ele ainda. Eles não tinham essas cores tão bonitas. Ou acho que estava. Foi aquela vez no parque de diversões? Lembro de ficar com o rosto grudado, sem um banheiro para poder lavar. Que coisa mais clichê ir namorar em roda gigante. Não, acho que foi maçã-do-amor. Mas eu nem gosto de maçã!

Eu devo estar muito engraçada, toda suja. Dá pra sentir os pedacinhos de algodão colados no rosto. Eu devia ir lavar, mas combinei de encontrar ela aqui. E ainda tenho muito chão pela frente, só dá pra ver o palito na pontinha. Então nada de dois beijinhos. Não suporto mesmo. Coisa mais sem graça, igual a outra lá. “Simplicidade”. E isso lá é motivo? Por que ele não admite logo que quer alguém mais nova e menos neurótica? E precisava me chamar de neurótica? Ele quer é uma mulherzinha clichê igual ela, que cozinhe e limpe e tenha filhos por ser a coisa a se fazer. Eu disse que ele vai se arrepender. Eu sei que vai. Deixa só eu terminar meu algodão doce.

7.2.02

Sen-ryu Pré-Carnaval
em 07.02.02

Me pego observando,
Da janela do ônibus,
Que não sei participar

22.1.02

Non-sequitur
em 20.03.00

Lost my love. Got a job. Got a haircut. Lost my mind. Lost my focus. Got some freedom? Found my rage. Lost my peace. Just want to sleep. Can't sleep. Want to run away. There's no place. Lost my dreams. Lost in dreams. Found some power. Lost the will. Caught a cold. Found my doubts. Lost any happiness. Was betrayed. Throwed punches. Heard lies. Spoke the truth. Cried a lot. I still do. Feel so lonely. Can't look up. Can't fight. Lost my power. Found my words. An old love. Lost my reason. Never had one. Fell from grace. From her arms. Lost my pride. Begged so much. Feel so righteous. Feel so much. Made mistakes. Always do. Forgave errors. Always do. Was my best. Not enough. Feel so lonely. The world went away. Falling so fast. Just want to go. Have some rest. Want to fight. Draw some blood. Can't hurt her. Albeit I should. I can't wait. Can't fight. Can't fight time. Everything is tainted by her touch. She's all I want. Miss her so much. Can't go out. Feel afraid. Can't stay in. Stalemate. Lost so much. Never did before. Had nothing before. Still don't. She made me better. Found something I can't hide. Lost so much on her tears. Lost her. Lost myself. Where to go to? What to do? Miss my records. Touch her pictures looking for her. Can't wait. She won't come back. Have my life. Have myself. "Just want something I can never have". Feel like nothing. Want nothing. Be nothing. But I can't. Want to hide. Want something that matters. Can't see any. Nothing to do. No place to go. Feel afraid. Doubt everything. Doubt I can write. Doubt you'll read. Doubt I'll like. Want to go back to her. To her arms. To her face. To her dreams. Dreamt of her lots of times. Sex was false, I could tell. Kisses and words were not true enough. Wake up crying. With dreams I can't cope with. Want to hate. I'm trying to. Don't think I can. Her, I never could. And had reasons. Letdowns. I still believe. Don't know why. Never thought love could be like this. I know I was good. In everything. Can't carry her. Did I try to? If I could, I'd heal me. I'd heal her. She knows that, I hope. But just can't wait. I'll be fit. I'll be fine. I'll work. I'll be better, in everything. Break my shackles. Break my love. Surprise her. She still wants my love. Doesn't want me. Love her so much. Want to hate. Want her back. Want me safe. Thought she had changed. I see the same girl. So there is love still. It was good to say goodbye. Heard things she had never said. Good and bad. Got to hold on to the bad things. So I can let her go. But the good ones are still hangin' around. I want to run. Away from here. Away from her. Away from me. To her. Still don't know what to do. Don't know what I need. Don't know what I want. Don't know what she needs. Don't know what she wants. Just don't know.

Non-sequitur.

15.1.02

Simplicidade
Em 14.01.02

Eu queria simplicidade.

Nada das complicações da mulher com que passei tanto tempo. Linda, brilhante, louca e cheia de neuroses reais e inventadas, que pagavam as prestações do carro do analista. Nada das nossas complicações acumuladas com o passar dos anos e anos juntos e das complexidades e mágoas que obrigatoriamente acompanham. Mais nada daquilo. Algo simples: “menina conhece menino, menina se apaixona, menino se apaixona, felizes para sempre”. Tão sem complicações, volteios ou floreados que não serviria de roteiro para a mais insossa das comédias românticas. Bem diferente do que eu tive com ela.

E foi mais ou menos isso que aconteceu. Algo simples, com uma pessoa simples de prazeres simples. Nada de passar noites brigando, realmente achando importante se aquelazinha do livro traiu ou não traiu, ou sussurrando idéias no escuro no lugar das jurinhas de amor com que se ocupava a maioria. Não era mais isso que queria, como estava acostumado. Mas simplicidade. Acho que foi isso que me fascinou na outra lá.

Havia uma promessa de simplicidade em torno dela. Algo que dizia que tudo seria tranqüilo com ela. Um ar quase pastoril, com aqueles olhos pacientes. Sem complicações, ela se apaixonaria e eu me renderia, mais fascinado pela promessa de nada demais que realmente interessado. Exatamente como aconteceu. Ela não era linda ou brilhante ou louca – eu nem mesmo a achava capaz de alguma neurose. Para simplificar ainda mais as coisas, não era nem pobre nem rica e ganhava mais ou menos o mesmo que eu.

Não era só a simplicidade de alguma coisa nova, a falta de bagagem comum que nós tínhamos. Na verdade o mérito era todo dela. Ela era simples. Algo impossível de explicar. O máximo que poderia iluminar é dizer que ela é sem sofisticação, mas normalmente isso implica em falta de educação ou ignorância; não era o caso. Ela sabia o suficiente, nada além. Não adianta. Ela era simples e pronto.

Com o tempo, descobri que ela foi simples desde que nasceu. Os próprios pais dela se espantavam com isso. A mãe, nada simples, acrescentava bobagens orientais à mistura de corujice e decepção tentando explicar de onde vinha a simplicidade da filha. “Às vezes parece uma santa”. Mas ela nunca parecia uma santa. Acho que nunca conheci ninguém tão humano. O estranho que a simplicidade dela nunca se traduziu em leveza. Para mim, ela trazia a impressão de algo que se arrastava, que nunca acordava, alguma criatura imensa dormindo no fundo do mar. Estranho que é mais fácil explicar isso que simplicidade.

Na verdade, faltava alguma coisa nela. Ou antes muitas coisas. Era por isso que ela se arrastava, era por isso que ela pesava. Por isso que nunca me apaixonei por ela. Ela não era simples por ter deixado de lado aquilo que era excesso, que não servia mais, que não era dela. Ela era simples como o desenho da casinha acompanhada de arvorezinha e nuvenzinha que as crianças fases: uma coisa que ainda não se tornou nada que possa ser realmente julgado.

E nunca foi isso que eu quis. Não sei como pude confundir as duas coisas. Como pude confundir incompletude com perfeição, falta com minimalismo. E não sei quando me dei conta do meu erro. Acho que não houve nenhuma revelação, nenhum momento onde as coisas ficaram claras. Mas sim aquela progressão cretina, onde as pistas vão se acumulando até que você chega no final do filme e se sente uma besta de não ter percebido quem era o assassinato na metade. Todas as pistas estavam lá. Nas histórias sem graça, nas memórias adolescentes sem desequilíbrios, na vontade de lavar a louça e cozinhar porque é assim que ela devia fazer. Eu nem sei mais quando as coisas terminaram.

O pior é perceber, num encontro aleatório, quem atingiu a simplicidade que eu procurava. Pós-louca, pós-prestações do carro do analista, pós-eu. Ela se livrou dos excessos. E eu nem completei minhas faltas.

9.1.02

Amores Fugidios IV: Despertar

Despertaram aconchegados - de modo inocente - como irmãos, não amantes. A cama era grande, proporcional ao quarto de paredes brancas na manhã de domingo. Ficaram desorientados até que o constrangimento os acordou por completo.

Ela e ele, desorientados e preguiçosos, iam fazendo sentido das coisas. Lembrando onde estavas, da festa de sábado dos drinks em copos bonitos e de fragmentos de conversa. E percebendo as roupas fechadas, batom e cabelos relativamente no lugar.

Atrasaram o primeiro olhar, a primeira palavra, estudados de modo a criar distância e pedir desculpas. Falharam. Algo em seus olhos sonolentos os entregava. Convidaram-se para o café na copa bagunçada.

Após os restos, se esgueiraram pela casa, mal contendo o riso pela situação. Um voltou para a cama, o outro para casa. O telefone dela ficou no guardanapo, sobre a mesa.

5.1.02

Amores Mortos IV: Detalhes

Ele não podia ter descoberto num momento pior. Ficava na cama do hotel, se forçando ao silêncio e ouvindo com nojo a respiração. Queria estar em casa - lá, ele a teria acordado para uma nova discussão.

Em vez disso ficava deitado na cama, em sensações indefinidas. O desejo de ir se confundia com o de ficar e torturá-la até que entendesse. A culpa era dela, afinal - se não tivesse segredos ou soubesse mantê-los, ele dormiria mais profundamente que ela.

Ficava ali, na cama apertada pelo monte que não queria tocar. Bebia e ouvia música com fones, sem escutar ou sentir nada além do peso no peito e na respiração. Ela podia dormir tranqüila: não saberia da descoberta dele até o fim da viagem.

Ele se sentia desolado pela impressão que a culpa era sua, que sua preocupação com a precisão das palavras causara a descoberta. Se acusava de paranóia, tentando dormir. Com outra palavra, ela confirmou tudo, ainda no aeroporto.

2.1.02

Amores Sonhados IV: Névoa

Sabia que os efeitos dela sobre ele eram evidentes. Se sentia transparente e óbvio diante do riso infantil e dos olhos azuis. Se esforçava profundamente para evitar os tremores que ela provocava.

Ele odiava as poucas ocasiões em que a encontrava, apesar de esperá-las ansiosamente. Se sentia uma presa inocente, envolto de forma inequívoca em sua névoa. A cada vez que, entre suspiros, pensava tinha mais certeza: ela era só névoa e olhos azuis.

Ela sabia de seus efeitos sobre ele e fazia de tudo para dispará-los. Usava de toques e risos breves e frases soltas e - acima de tudo - piscava os olhos de serpente. Ele sabia que não podia confiar naqueles olhos, mas adorava a falsa atenção azul.

O pior - e por isso mesmo mais doce - eram os sonhos. A cada encontro era inevitável: sabia com quem iria sonhar. Adorava a névoa neles que o impedia de respirar.