31.8.01

Prozac Pulp
em 26.10.99

É noite na Cidade. Uma noite quente, daquelas em que ter ou não ter um ventilador não faz a mínima diferença. E mesmo assim não consigo me desfazer do chapéu e do sobretudo. Maldito Bogart. Tirá-los me deixa tão vazio e desprotegido...

E não posso parecer vazio e desprotegido na minha linha de trabalho. Principalmente depois da demissão. Fiz o possível para ser demitido, os direitos trabalhistas compensavam. (Se meu pai me visse agora, comprando meus mentolados com o dinheiro do contribuinte...) Meu analista acha que foi uma péssima jogada falar sobre os Arcontes. Mas o que posso fazer. É a mais pura verdade. Ou um dos dois aparentes lados da Moebius do real.

Nada me entretém nessa noite. Nem o rádio que toca Blue Moon, nem brincar com meu zippo, nem as revistas pornográficas. Por que diabos as comprei? Não consigo me livrar da fascinação mórbida que me tomou depois de ver o que os servos dos Arcontes tinham que fazer com as garotas antes de alimentar o Filho da Lua. Ainda posso ver a imagem atrás dos meus olhos. Toda pornografia precisa de degradação, mas agora vejo tudo degradado. (Será só desejo essa inquietação?)

Não agüento mais ficar acordado nesse escritório infernal. É estranho ver o olho na porta. Principalmente depois de anos correndo na frente de policiais e de meus hoje colegas para perguntar o que esperavam ver já tendo as fotos no filme. Eu devia ter corrido menos naquele dia. E devia ter jogado o filme fora. Não que faça diferença para Eles que eu saiba ou não. Mas faz para mim. Eu gostaria de poder ignorar o que tenho em mãos.

Me pego mais uma vez perto da porta, olhando para as fotos novamente expostas no varal. A porta já estava aberta. Estranho como me sinto sentado ainda (novamente?)... Mas não posso, por mais que deseje, sair. A Célula espera me encontrar aqui. Chang disse que só os riscos de giz me protegem Deles. Há dois dias não tenho coragem de tentar sair do círculo. Chinês maldito. Sempre sabe de tudo. Definitivamente ele não aprovaria o uso de whisky ou coca agora.

O barulho da chuva me atrai até a janela. O vento se apressando e os pingos cada vez maiores e mais frios quase acabam com minha infelicidade tão cultivada. Ainda bem que a pílula amarela e azul de que tanto preciso acabou de escorregar para a rua.

A espera acaba de aumentar.

21.8.01

Necrópole Pessoal - 3 de ?
em algum momento de 2000

Ele andava só pelas ruas, mesmo depois do acidente. Vestia um terno desbotado e um chapéu amassado, vagava de ponto em ponto carregando um sorriso e o violão.

A rotina dele era bastante semelhante à de um grande período da sua vida: entrava pela porta da frente, tirava o chapéu numa reverência enquanto sussurrava boa noite, dizia o nome de uma música e começava a tocar.

A diferença maior começava nesse momento. Às vezes com sorrisos sem motivo, outras com beijos apaixonados, poucas - com o ônibus particularmente vazio e silencioso - gritos assustados. Mas sempre era notado. E - de um modo que justificava a insistência - aplaudido.

15.8.01

Necrópole Pessoal - 2 de ?
em algum momento de 2000

Há muito tempo, segundo o próprio, ele vinha sendo assombrado por um amor antigo. Na maior parte do tempo, era fácil ignorar. Bastava se concentrar em outra pessoa e as coisas transcorriam sem muitos problemas.

Mas, ultimamente, tudo vinha se complicando. Ele tinha encontrado uma nova paixão. Mas, em momentos cada vez mais freqüentes, ele enxergava nela seu antigo amor. Os indícios iam se acumulando aos poucos. Num dia, o mesmo número na tintura de cabelo. Noutra noite, a mesma combinação de velas, música, taças e talheres de anos passados.

Não que ele desgostasse da situação: tinha saudades daquele amor morto. Mas já o tinha - dizia - enterrado. Mas queria viver o amor novo. Mesmo que só pelos medos dos erros antigos.

O fantasma distante foi dominando a situação atual a tal ponto que - durante algumas semanas - o amor do momento é que era a memória etérea.

Uma tarde de domingo assistiu, entre gemidos e corpos suados, o fantasma partir. Bastou um nome - certo ou errado - sussurrado uma única vez.

4.8.01

Torpor
Em 08.11.99

na noite, sozinho
sonhava com o torpor
de seu narguilé

1.8.01

Dos Diários de Ulisses VI
em 10.10.00

Não consigo mais lembrar todas as aventuras por que passei. Desde
de Ítaca, perdi a conta das vezes que vi ao largo o Barqueiro e
coloquei um óbulo em minha boca. Entre os poucos achados e
muitos perdidos, a única constância foi esse diário.

No último desequilíbrio da Fortuna, houve um momento que pude
escolher entre meu arco e estas notas. Mas salvar o diário era todo
o importante. Mesmo ao pensar - faminto - na minha arquearia, não
consigo me arrepender.

As notas são minha imortalidade.