29.12.01

Amores Irreais III: Cartas

Ela não era muito de escrever cartas. Escrever - qualquer coisa, por mais insignificante - a incomodava. Seus amigos recebiam livros sem dedicatórias e cartões com assinaturas solitárias. Detestava a permanência das palavras.

Tudo mudou quando ele desapareceu. Saiu um dia e não voltou, inexplicavelmente. A ausência foi preenchida por uma vontade enorme de escrever para ele. As cartas mentiam uma vida roubada.

Escrevia por horas, até suas mãos não agüentarem, quando passava a adicionar acessórios de todo o tipo. As páginas - sempre muitas - falavam tão pouco que poderiam ser simples exercícios de estilo. Ela mesma pensava assim ao postá-las para o distante endereço inexistente.

Continuou por centenas de semanas, com o resultado esperado. Cansou, desistiu e não foi ao correio. "Sinto sua falta", dizia o telegrama.

26.12.01

Em 26.12.01

Amores Mortos III: Espaços Vazios

Ela acordou por conta do sol, já reclamando da cortina aberta. Sem o som do banho ou o cheiro do café, se lembrou. O peso da cama vazia a esmagou: ela deixara a cortina aberta.

Um telefonema não atentido impediu que dormisse. Ficou remoendo tudo o que passara enquanto procurava o leite na geladeira vazia. Ligou a tv, sentou e tentou se convencer que gostava do espaço extra na cama.

Seus dedos começavam repetidamente número dele, sendo impedidos sempre antes de o completar. Passaria uma tarde com seus discos de jazz. O sax ao fundo do pôr-do-sol a convencia que não passaria por aquilo de novo.

Foi ao cinema, sem pensar no título. Não dividiu a pipoca ou o espaço até que se encher do filme e da cadeira vazia a seu lado. Engoliu as lágrimas, só aumentando a vontade de chorar.

As ruas vazias a deixaram com um frio insuportável. Correu para casa e o frio cresceu ao não encontrá-lo. Sentou na cama e decidiu uma vingança: contaria a ele como adora o espaço extra na cama.

22.12.01

Amores Sonhados III: Inversão

Ela não podia - mesmo que do modo mais tênue - existir. Suas asas, cabelos de prata, tom de pele e olhos negros sem pupilas eram uma total impossibilidade. Seu povo partira dali há muito, mesmo assim ela esperava toda noite por seu amado.

Ele, mortal e entediante, fugia dela em seus sonhos. Tudo nela o perturbava, principalmente os risos quase inaudíveis que o monstro dava enquanto voava ao seu redor. Se desesperava com a insistência das torturas dela naquela terra estranha.

Tentou, com medo, parar de dormir, mas isso se mostrou impossível. Passou por toda uma farmacopéia que só adicionava uma ressaca enorme ao acordar. Estava quase conformado em ser eternamente assombrado quando encontrou um livro sobre como controlar seus sonhos.

Ela se surpreendeu ao ver que ela não fugia, mostrando uma hesitação típica de quem tem algo a dizer. Ao ouvir as palavras equivocadas, não pôde deixar de chorar. Ou de notar outro sonhador nas bordas daquele fim.

19.12.01

Amores Perfeitos II: Tristezas

Estavam desesperados, ou naquela situação que vem logo depois do desespero. Era o momento de tentar algum tipo de recomeço. Não que realmente desejassem.

Ela foi, mais ou menos, abandonada sem explicações. Ele, traído e as poucas explicações nada convincentes. Estupefatos e tristes, vagavam procurando algo que os distraísse.

Já se conheciam antes - não se gostavam muito. Mas o espelho de sua tristeza no outro os atraia. Cada um queria curar o outro, na tentativa de curar a si.

Se viram - de repente - nos braços um do outro. Antes do primeiro beijo disseram, ao mesmo tempo, "nunca daremos certo". Era tudo que precisavam ouvir.

15.12.01

Amores Complexos II: Atritos

Era a terceira briga pública na semana. Claro que a semana provocara, com jantares e festas demais. Muitos caroços de azeitonas para se livrarem, censurarem e se lembrarem da falta de consideração, da humilhação e do "você não me ama mais!! Nunca amou!".
Não era verdade. Eles se amavam mais do que a maioria daqueles casais de pombinhos cheios de "môs" e "benhês". Suas agressões - e tolerância em suportá-las - eram a maior prova disso.

Estranhavam quando não se agrediam. Torciam para que os gritos começassem e quebrassem o isolamento que sentiam. Aumentavam a intensidade - dos gritos e dos insultos - conforme aumentava o desespero de que no outro não existisse mais amor.

Tentaram se salvar com um romantismo que não funcionava para eles. Brigaram ainda no jantar, algo sobre a cor das velas não combinar com a toalha. Terminaram satisfeitos e nus, brigando no chão.

12.12.01

Amores Fugidios III: Trem

Foi a voz que chamou sua atenção para o vestido florido e os cabelos avermelhados sem rosto no grupo de meninas. Pensou em se aproximar, mas a estação vazia não oferecia cobertura. Decidiu que haveria tempo no trem, e foi tomar um café.

Ela entrara no trem antes dele, protegida pelo grupo. Amaldiçoou a sonolência da caixa ao não encontrar lugar próximo a onde imaginava ela estaria. Ignorou a paisagem que saíra de casa para ver e ficou passeando pelo trem, tentando vê-la por inteiro.

Como que por mágica, seu rosto se escondia dele. Voltou ao seu lugar, tentando construir um rosto para os pedaços de queixo e nariz que viu, sem sucesso. Decidiu deixar de rodeios e ir - mais que ver - falar com aquele rosto.

Tocou timidamente na alça infantil do vestido, perto de um túnel. A escuridão chegou antes que ela se virasse, enquanto ele refletia sobre o papel ridículo que estava fazendo. Ela ainda pensa no leve toque fugidio sobre seu ombro no trem.

8.12.01

Amores Irreais II: Asilo

Sabia que tinha um amor longe, ou achava que tinha. Tinha dúvidas quanto a realidade dos cabelos e sorriso brilhantes dela. Talvez as pílulas coloridas tivessem algo a ver com a nuvem em sua cabeça.

Ela vinha de vez em quando, talvez com uma certa regularidade. A cada vez estava diferente, cores diferente, achava. Ele não se lembrava bem quando ela vinha.

Ela falava algo sobre um pai falso morto. Ele quase se lembrava disso e de uma casa numa praia quente. Ele ficava esperando por ela, mesmo sem ter certeza sobre quem era ela.

Ela contou algo sobre um primeiro dia na escola, sem choro nem nada. De algum modo ele sabia que isso era importante. Mas menos que o sorriso da cor das paredes macias.

Em 08.12.01

5.12.01

Amores Mortos II: Mapa

Não podia mais andar pela cidade depois dela. Pelo menos não sem lembrar a cada poucos passos, o que causava quase efeito pior que de uma proibição. Tudo em que pousava os olhos - de algum modo - fazia parte da história dos dois.

Num breve passeio de ônibus, encontrou diversos lugares e ânimos. Da clínica veterinária em que segurou o gato dela dentro de uma bacia à coffee shop onde costumavam "tomar café" às duas da tarde aos domingos. Incomodou particularmente - por conta de uma avenida deslocada - o lugar onde, entre bebidinhas e vendedores chatos, ela elogiou seu beijo.

Diante de tantos lugares - quase todos os lugares - resolveu ficar em casa. Mas sofás, quartos, salas, banheiros, cozinhas e todo o resto o lembravam de uma história, um momento. Queria fugir, mas não sabia para onde.

Mas o pior era pensar no mapa dela. Em como as nódoas novas se sobrepunham às coisas que escreveram juntos. No medo se ter seus grifos esquecidos.

1.12.01

Amores Perfeitos I: Vácuo

Ele era de um carisma extremo. Frases espirituosas e as piadas certas pulavam de sua boca quase sem pensar. Todos, até os invejosos, sabiam que era impossível não gostar dele.

Seus amigos se intrigavam dele não ter uma namorada. Era só escolher uma das solteiras disponíveis e seus talentos naturais cuidariam do resto. Alguns se interrogavam se ele não seria gay, mas um ou dois corações partidos entre os amigos diziam que não.

Ele sabia - e se envergonhava - da verdade. Tinha medo de ser ofuscado pela mulher que o apaixonaria. Procurava alguém sem as qualidades que admirava, mas que ainda assim guardasse algum interesse.

Encontrou sua felicidade em cabelos descoloridos, horas de malhação, calorias contadas e silicone. Ela era pouco mais que um objeto. E ele a amava justamente por isso.