15.1.02

Simplicidade
Em 14.01.02

Eu queria simplicidade.

Nada das complicações da mulher com que passei tanto tempo. Linda, brilhante, louca e cheia de neuroses reais e inventadas, que pagavam as prestações do carro do analista. Nada das nossas complicações acumuladas com o passar dos anos e anos juntos e das complexidades e mágoas que obrigatoriamente acompanham. Mais nada daquilo. Algo simples: “menina conhece menino, menina se apaixona, menino se apaixona, felizes para sempre”. Tão sem complicações, volteios ou floreados que não serviria de roteiro para a mais insossa das comédias românticas. Bem diferente do que eu tive com ela.

E foi mais ou menos isso que aconteceu. Algo simples, com uma pessoa simples de prazeres simples. Nada de passar noites brigando, realmente achando importante se aquelazinha do livro traiu ou não traiu, ou sussurrando idéias no escuro no lugar das jurinhas de amor com que se ocupava a maioria. Não era mais isso que queria, como estava acostumado. Mas simplicidade. Acho que foi isso que me fascinou na outra lá.

Havia uma promessa de simplicidade em torno dela. Algo que dizia que tudo seria tranqüilo com ela. Um ar quase pastoril, com aqueles olhos pacientes. Sem complicações, ela se apaixonaria e eu me renderia, mais fascinado pela promessa de nada demais que realmente interessado. Exatamente como aconteceu. Ela não era linda ou brilhante ou louca – eu nem mesmo a achava capaz de alguma neurose. Para simplificar ainda mais as coisas, não era nem pobre nem rica e ganhava mais ou menos o mesmo que eu.

Não era só a simplicidade de alguma coisa nova, a falta de bagagem comum que nós tínhamos. Na verdade o mérito era todo dela. Ela era simples. Algo impossível de explicar. O máximo que poderia iluminar é dizer que ela é sem sofisticação, mas normalmente isso implica em falta de educação ou ignorância; não era o caso. Ela sabia o suficiente, nada além. Não adianta. Ela era simples e pronto.

Com o tempo, descobri que ela foi simples desde que nasceu. Os próprios pais dela se espantavam com isso. A mãe, nada simples, acrescentava bobagens orientais à mistura de corujice e decepção tentando explicar de onde vinha a simplicidade da filha. “Às vezes parece uma santa”. Mas ela nunca parecia uma santa. Acho que nunca conheci ninguém tão humano. O estranho que a simplicidade dela nunca se traduziu em leveza. Para mim, ela trazia a impressão de algo que se arrastava, que nunca acordava, alguma criatura imensa dormindo no fundo do mar. Estranho que é mais fácil explicar isso que simplicidade.

Na verdade, faltava alguma coisa nela. Ou antes muitas coisas. Era por isso que ela se arrastava, era por isso que ela pesava. Por isso que nunca me apaixonei por ela. Ela não era simples por ter deixado de lado aquilo que era excesso, que não servia mais, que não era dela. Ela era simples como o desenho da casinha acompanhada de arvorezinha e nuvenzinha que as crianças fases: uma coisa que ainda não se tornou nada que possa ser realmente julgado.

E nunca foi isso que eu quis. Não sei como pude confundir as duas coisas. Como pude confundir incompletude com perfeição, falta com minimalismo. E não sei quando me dei conta do meu erro. Acho que não houve nenhuma revelação, nenhum momento onde as coisas ficaram claras. Mas sim aquela progressão cretina, onde as pistas vão se acumulando até que você chega no final do filme e se sente uma besta de não ter percebido quem era o assassinato na metade. Todas as pistas estavam lá. Nas histórias sem graça, nas memórias adolescentes sem desequilíbrios, na vontade de lavar a louça e cozinhar porque é assim que ela devia fazer. Eu nem sei mais quando as coisas terminaram.

O pior é perceber, num encontro aleatório, quem atingiu a simplicidade que eu procurava. Pós-louca, pós-prestações do carro do analista, pós-eu. Ela se livrou dos excessos. E eu nem completei minhas faltas.