30.4.02

Gentileza sob o Sol
30.04.02

Não consigo me livrar de você sob o sol. Por mais que tente, você contra o carro, o ar de desolação, o olhar no nada persistem. São a marca de um jogo encerrado. Ou outro – muito menos agradável – que começa. Você brilhando ao sol marcou o início do pior dos jogos: gentileza.

Sei que não era para mim que você estava lá. Que não era nenhum comunicado de fatos, mas a simples constatação de um estado em especial, sem se importar com quem assistia. Desolação ou vertigem, a razão não era importante. Mas era algo que não deveria ter visto.

Sabia que – de todos – era o único proibido de me aproximar. As regras da gentileza são muito claras, apesar de impossíveis de serem seguidas. Sufocar a curiosidade, ignorar a humanidade, tentar me desfazer do carinho. Fingir desprezar sua imagem sob o sol.

Tudo em nome do bom tom, do correto: das regras da gentileza.

15.4.02

Parábola I
Em 15.04.02

Há muito, Chuang Tzu tinha um discípulo que procurava no corpo a chave do espírito e na luta o caminho da paz. Ele sabia que estaria pronto quando fosse capaz de, com um golpe do seu punho, parar por um momento todo o rio Amarelo.

Chuang Tzu só permitiu a ele uma chance de tentar, pois sabia que o mundo não pode ser a vítima da vaidade do homem.

Depois de anos, o discípulo foi até o mestre, dizendo estar pronto para o teste. O mestre assentiu: ele estava pronto.

O discípulo andou até a margem do rio e desferiu seu golpe.

Nada. Era como se o golpe nunca tivesse sido recebido.

O discípulo foi até Chuang Tzu, sabendo que havia desperdiçado toda a sua vida. "Mas o senhor não julgou que eu estava pronto, mestre", foi a pergunta.

"Estar pronto não significa vencer," disse Chuang Tzu.

11.4.02

Reciprocidade
Em 11.04.02

Tudo que eu queria era reciprocidade.

De qualquer tipo, de todos os tipos. Claro que, inicialmente, dos sentimentos positivos. Reciprocidade de curiosidades, de olhares, de interesses. A ansiedade pelo momento em que ele me olharia como há tempos eu já o via em segredo. O processo lento de torná-lo meu, até que ele achasse que se apaixonou por mim – pela simplicidade sem sentido que ele teima em enxergar – e se aproximasse.

Foi assim que, por um tempo, aconteceu. Ele acreditou que tinha encontrado sua história simples : “menina conhece menino, menina se apaixona, menino se apaixona, felizes para sempre”. A história que ele tanto repetia para mim, como um elogio. Ele nunca soube, mas me ofendia a cada vez que ele repetia o slogan. “Nada demais”, dizia, no fim das contas.

Mas era recíproco. Ele me amava e era suficiente. Por todas as razões erradas, mas era o suficiente. Ele me amava por ficar quieta, por não entender, por cozinhar e mil outras coisa. Mas, mais que tudo, por deixá-lo em paz. Por não ser ela.

Hoje penso se não fiz e enxerguei tudo errado nele. Sempre busquei reciprocidade, manter os dois sem dívidas entre nós, sem raivas, sem nada que pudesse desfazer o equilíbrio. Demorei tempo demais para descobrir que ele não funciona assim. Que ninguém além de mim funciona assim. Quando percebi que estávamos perto demais de só existir indiferença, acabei com um saldo que acabou com tudo. Não consegui não sentir nada por ele.

Mesmo agora, quando não há mais nada, continuo sentindo coisas demais por ele. Raiva, saudades, pena... Até amor. E nada. Nenhuma reciprocidade.

Nem no telefone.
Perfil Pictórico
Em 11.04.02

3.4.02

Pulp Hack

Barato, barato. Como um romance de banca. Muito barato. Sujo e sujando os dedos, como todas as coisas que vendiam nas bancas de revista da cidade. Como a própria cidade. Era assim que o escritor queria se sentir, martelando na máquina de escrever. Nada de computadores. Computadores são limpos como hospitais, frios como a noite e várias outras metáforas que ele ficava tentando se convencer que eram verdadeiras enquanto os dedos doíam, nas pancadas fortes para compensar a fita gasta.

As coisas se complicavam ao se somar o whisky que teimava em beber para parecer mais barato. A bebida travava em sua garganta e dava trabalho de botar na garrafinha de metal, mas era isso que seus heróis dentro e fora dos livros bebiam e diziam beber. Não importava o preço. Pagaria o quanto fosse necessário pela bebida barata como as putas que ele pensava de modo meio distante em contratar algum dia. Já tinha até feito as contas. As putas baratas corretas iam custar ainda mais caro que a bebida barata correta. O vestido anos 40, o chapéu e os cigarros sem dúvida seriam cobrados como um fetiche.

Bebia, bebia e martelava na máquina. Tentava escorrer a consciência como o sangue e as metáforas baratas nas ruas da cidade nua. Mas não conseguia desligar suas neuroses pós-industriais. E o calor, que o fazia suar como um dedo-duro dentro da cadeia, como devia suar na Califórnia.

Martelava, prendia os dedos e dava ânsias a cada gole, mas não conseguia ser pulp. Era impossível ser barato. Conseguiu se escorar até o banheiro, se desviando das luzes que colocou pelo caminho para conseguir a iluminação correta. Vomitou e desmaiou ao lado da privada, sabendo que nunca seria pulp. No mínimo um Raymond Chandler.

E teria que viver com isso.
Digitais



Foto: Iuri Rubim