15.11.03

Ruído Branco

em 15.11.03 - com meus cumprimentos a Warren Ellis

Há décadas eu não ouço o silêncio, desde que acordei nessa cidade. Não escuto mais a ausência que destaca o barulho dos grilos, de um cachorro uivando à distância, dos pássaros acordando quando eu estou indo dormir ou de algum casal mais empolgado na noite. Mesmo quando tudo está silencioso e todos dormem, eu não consigo ouvir os sons que antes me incomodavam tanto.

Só o maldito zumbido. A freqüência da eletricidade vibrando nos fios, nas pessoas, nas embalagens dos alimentos, em todos os lugares. Mesmo no meio do barulho de uma rua lotada, no meio do tagarelar de milhares de vozes, não consigo desligar o zumbido. Ele está em mim.

Não estava, antes de ser congelado. Antes do adiamento da minha cura, as cidades já vibravam, mas em outro ritmo, em outra freqüência. Os fios de alta tensão, os poucos computadores ligados, os ventiladores e aparelhos de ar condicionado. Mais espaçadas, as fontes de barulho não formavam a massa de som que formam hoje. O zumbido ainda descansava às vezes.

E havia lugares aos quais ele era incapaz de chegar. À beira do mar, à cama do sexo, ao chuveiro. Hoje, o zumbindo está comigo, com todos. Nos nossos telefones embutidos, que captam os fios que vazam eletromagnetismo. Nos implantes que monitoram as funções vitais. Nos amantes e seus aumentos de memórias.

Quando refizeram meu corpo embutiram em mim todas as curas e sensores hoje habituais. Ninguém aqui se lembra de tempos mais silenciosos, só nós saídos do freezer - e só os muito ricos têm alguma credibilidade aqui. Nós nos lembramos do silêncio.

Alguns chegam a furar seus tímpanos para calar o tinnitus. Não adianta nada. A maldita vibração continua ali, sensível em todos os movimentos, no toque dos sensores sob a pele. Mesmo se não fosse assim, os médicos reconstróem os ouvidos. Descongelados têm bons planos de saúde, que nos forçam a tratamentos que não queremos.

Eu queria só queria poder ouvir sua respiração no escuro.

3.11.03

Sigilismo - Capítulo I

Sigilismo é o título provisório da minha tentativa de romance para o National Novel Writing Month. Este é o primeiro capítulo até agora. Tudo é temporário e pode ser modificado. Existe a possibilidade de que trechos selecionados apareçam aqui durante novembro.

Preso à máquina de escrever, ele começa a traçar seu caminho para fora dali. Ainda é muito cedo, mas ele sabe que em pouco tempo seus dedos vão estar doloridos pela falta de costume nessas antigüidades. Engrenagens que empurram os tipos gastos em direção à fita. A pancada contra o papel. O pequeno choque a cada vez que as palavras se movem. "Não é a melhor forma de escrever", pensa o escritor, que nunca usou outra coisa além de caneta ou computadores para escrever. Mas, se pudesse escolher alguma coisa, escolheria não estar ali.

Tinha que escrever seu caminho para fora. De uma forma compreensível o suficiente, proibindo sua caligrafia terrível. Caneta e papel permitiriam a sua mente passear por aí, diminuindo os efeitos do encanto. Precisava se concentrar nas palavras, tornar cada uma especial com seu esforço. Os dedos que logo começariam a doer seriam sacrifício o suficiente.

Apreciava a ironia. Finalmente tinha o tempo e o motivo para escrever. A vontade era pouca, o prêmio não era lá grande coisa, mas a oportunidade não podia ser desperdiçada. Mais que isso, tinha um cliente esperando que prestasse contas dos seus progressos, que explicasse tudo que acontecera nos últimos meses. Para isso, era necessário criar com palavras sua saída dali. Construir o lugar onde estava, esculpir rachaduras nas paredes que permitiriam que escapasse.

Fora por se deixar levar pelas palavras que acabara ali, preso por elas. Perdera seu foco, envolvido pela prosa e idéias de outros, esquecera quem era. Agora, ao se impor sobre as palavras, forçá-las a se dobrar sob sua vontade, sairia dali.

Não havia motivo para pressa, reconheceu quando seus dedos começaram a doer. O tempo não passava com a mesma velocidade ali. Enquanto lá dentro horas, dias e semana pareciam se acumular sem nenhuma mudança visível, lá fora - lá fora? - o tempo ficaria parado enquanto não passassem as páginas do livro.


Por sorte ele não cobrava por dia.