8.3.04

Amor de Menina
em 08.03.04

A Sofia era uns dois anos mais velha que eu, talvez menos, e tinha entrado na faculdade mais ou menos esse tempo antes. Acho que eu estava no meio do segundo ano quando soube dela. Um professor distribuiu uns roteiros de uma turma mais avançada para a gente analisar. Ele era daqueles substitutos que colocam a turma para trabalhar nas teses deles, torcendo o programa pra caralho e fodam-se as disciplinas. Era uma disciplina de crítica e ele resolveu encaixar os estudos de gênero dele de qualquer jeito.

Ele distribuiu os roteiros de uns curtas, sem nome dos autores, e a gente tinha que escrever sobre o autor. Sexo, background, influências e o diabo a partir dos roteiros. Eu peguei um roteiro que se resumia a uma série de conversas entre casais misturados com monólogos sobre as elipses e o não dito. Lembro de, lendo a sinopse, achar que era um filme de mulherzinha mal comida, cheio de blábláblá e falando dO Amor. Mas fui lendo e percebendo que não era assim. Era um filme de um homem, provavelmente mais velho, lá pelos quarenta. E muito triste.

Porque os homens, nessas coisas, normalmente são tratados como uns imbecis, correndo atrás de buceta e fazendo merda a torto. Um negócio Homer Simpson. E nesse roteiro não, os caras eram muito bem feitos, adultos, adolescentes ou velhos.
Eu fiquei impressionado com o quão bem ele escrevia as mulheres. Não havia muito antagonismo ou aqueles scripts predeterminados. Cada discussão era uma situação, parte de uma história que se desenrolava além da tela.

Daí eu sentei e escrevi. Que o autor era provavelmente um homem, depois dos quarenta, divorciado. Criado só pela mãe no meio de irmãs ou com treinamento em psicologia. Que ele provavelmente via o cinema como uma forma de teatro - poucos cortes, câmera parada - e provavelmente acreditava no diretor como o autor do filme.

Errei tudo, tirando a parte do diretor como autor.

O professor tinha pedido para os autores escreverem umas linhas sobre eles e os roteiros sem se identificarem. O meu roteirista era uma menina um pouco mais velha que eu, que adorava Greenway, Lynch e Acossado - "mas só Acossado". "Sei que não dá para dizer isso pelo roteiro", o texto dizia. "mas eu escolhi escrever um roteiro possível de ser filmado no pouco tempo desses nossos semestres abreviados."

Eu fiquei chocado. Eu nunca tinha me sentido tão bem retratado "num filme". Ninguém expunha tão bem o desencaixe que eu tentava tratar nas minhas histórias. E era uma mulher.

Até ali eu nunca tinha considerado as mulheres grande coisa. Colocando assim fica meio ridículo, mas até ali eu considerava - regra geral - mulheres menos inteligentes e interessantes que os homens. Nada biológico, eu achava, mas o problema social não ia ser resolvido tão cedo. Elas eram menos aventureiras, menos originais. Talhadas para serem ajudantes, não líderes. Eu não lembrava de nenhuma mulher na minha realidade imediata que tivesse preocupação de se expressar, criar seus projetos.

Para mim, a questão era ainda mais profunda. Na minha experiência, as mulheres estavam mais interessadas em reagir conta um modelo imaginário de homem - opressor, machão - do que em entender quem nasceu depois do feminismo. Me pareciam querer excluir os homens da possibilidade de um convívio mais próximo, reservando a um espaço determinado, como - rezam as lendas - os homens faziam com as mulheres até os anos 50. E eu percebia isso mesmo nas mulheres mais próximas, nas minhas namoradas. Pessoas inteligentes e sensíveis, mas que tinham um ódio não articulado dos homens.

O roteiro da Sofia me fez repensar tudo isso. Ainda pensava nas mulheres daquele jeito, mas a existência de uma exceção me dava alguma esperança e me enchia de curiosidade sobre a autora desconhecida.

Não lembro bem o motivo, mas demorei um bom tempo até começar a procurar quem tinha escrito o roteiro. Acho que teve uma greve ou coisa assim. Mas nesse meio tempo eu lia o roteiro várias vezes e ficava imaginando como seria a autora. Não conseguia formar uma imagem que se fixasse a partir da minha imaginação. A única constante é que ela tinha uma voz bonita, falava baixo e devagar e usava aqueles óculos com aros de plástico preto - uma aposta bem razoável, já que até tinha um povo que não tinha nenhum problema de vista mas usava aquilo para parecer mais cool. Entre uma e outra leitura, as impressões da primeiro momento foram crescendo dentro de mim. Passei o roteiro para uns amigos, conversei com eles a respeito. Um até disse que eu tinha melhorado muito do último e se surpreendeu quando eu disse que não era meu, mas de uma mulher que eu não sabia o nome. Engraçado que o roteiro nunca era de uma "menina", mas de uma "mulher" que eu imaginava ter mais ou menos minha idade. E, na minha cabeça, qualquer mulher da minha idade que eu não estivesse insultando ainda era uma menina.

Depois de um tempo, eu meio que esqueci o roteiro. Não de todo. O filme abriria com um trecho de Ana Cristina César - "Não é automatismo. Juro. É jazz do coração" - e eu achei depois um livro dela num sebo, que até tinha o poema. Acabei lendo poesia e feminina - coisas que antes me dariam coceira. Qualquer coisa para me ajudar a entender a autora.

Quando as aulas voltaram, eu imaginei um jeito rápido de descobrir de quem era o roteiro. Fiz uma cópia d afolha de rosto e coloquei no mural onde avisavam das festas e coisas assim, com uma nota perguntando de quem era. Fiquei meio puto de não ter pensado em anda assim antes, ter perdido tanto tempo imaginando como encontrar, como descobrir sobre quem escreveu.

Se me perguntassem na época eu não saberia dizer por que eu fiquei tão interessado em descobrir quem tinha escrito aquilo. Eu não falava muito sobre o assunto, andava meio isolado das coisas, fazendo uns trabalhos com imagens reaproveitadas, coisas distorcidas, que me colocavam muito tempo na frente do computador em casa, sem precisar lidar com equipe nem nada. Ficava em casa, navegando na Internet, brincando com efeitos de montagem, tentando colar cenas de comerciais e outras coisas de domínio vagamente público num filme que causasse certas impressões, preferencialmente opostas ao clima de felicidade dos comerciais. Por conta de um romance que eu tinha lido e do tempo extra da greve.

Eu pensava muito naquele roteiro, lia e relia com a mesma sofreguidão contida com que eu passava de blog em blog em fotolog, procurando me distrair de um sentimento difuso de perda que eu sentia. No roteiro, na autora fugidia dele eu iria encontrar alguma resposta.

Demorou uns dias para aparecer qualquer resposta sobre o papel no mural. Eu olhava com mais freqüência do que checava e-mail, acho. Até que tinha um nome lá, escrito no papel mesmo. Sofia Kelcher, um site com textos de ficção apontado no Google, nenhuma informação pessoal. Fui lendo as coisas, a maioria no mesmo nível do roteiro e fui ficando fascinado por ela. Juntava os pedacinhos - as palavras repetidas, as citações escondidas, as variações de registro - e ia montando um retrato da autora de voz bonita, num exercício semelhante ao que eu tinha feito antes, mas mais importante. Necessário até.

Eu cheguei a sonhar com ela. Não conseguia me lembrar de um corpo ou rosto, mas só da sensação de paz que ela de sonho me dava. Maluquice total. Era uma coisa muito esquisita. Acho que foi a primeira vez que eu comecei a admirar uma mulher. E eu nem conhecia. Talvez isso deixasse mais fácil, eu podia pegar qualquer figura e despejar todos os signos que eu tinha colhido, encaixar tudo que achava ter descoberto em uma figura imaginária perto de perfeita. Perfeita mesmo, com aqueles defeitos que amaciam as arestas de caráter que só gente chata tem. Na minha cabeça ela era alta, com porte de modelo, mas sem a cara de lobotomizada que a fome deixa nelas ao vivo. Algo bem impossível, bem fútil.

A beleza sempre foi o valor mais importante de uma mulher para mim. Eu não admitia, mas era. Eu não me lembro de ter achado uma mulher sexualmente interessante quando ela não se encaixava fisicamente num cânone maluco que eu tinha. E um cânone bastante exigente, ainda por cima. Eu me enganava dizendo que outras coisas eram importante, mas até minhas amigas-só-amigas tinham que estar dentro daquele padrão. Puta, eu era muito doente.

E a situação tinha se invertido. Eu estava apaixonado por algo incorpóreo, mais essencial. Coisas que eu nunca tinha me preocupado de fato em enxergar em uma mulher. E sem um corpo, uma foto que fosse para prender tudo aquilo.

O fim da busca foi bastante decepcionante, bem simples na verdade. Foi só perguntar por ela para alguém da mesma turma e me apontaram uma menina miúda, com jeito desorientado e os obrigatórios óculos de aro grosso, roupas meio amassadas no fim do corredor. Eu tinha me esbarrado com ela antes pelo prédio, claro, mas nunca registrei nada além de... Nada, eu não tinha nenhuma memória dela.

Senti uma puta decepção. A minha Sofia era bem mais que aquilo, bem mais bonita e - principalmente - mais bem vestida. Mas ao mesmo tempo ela me parecia tão real e inapelável que qualquer uma das meninas que eu tinha conhecido antes, tão mais imponente por saber que tinha muita coisa ali dentro que não consegui virar as costas. Não consegui nem fazer uma piadinha para mim mesmo sobre a mochila detonada e destoante que ela carregava.

Eu vi algo que não estava de todo ali - uma promessa de completude, de tranqüilidade, o sonho que eu tive, a beleza própria que eu inventei na hora. E tive que me aproximar.

3.3.04

21 Dias: Beat Takeshi
em 03.03.04

O dedo faltando e as tatuagens não chamariam atenção em outro ambiente. Se a mama-san entendesse português sem gestos e a filha não tivesse tanto sotaque, o homem com um pedaço de dragão estampado nas mãos não seria nada de extraordinário.

Mas ele entra no restaurante como se fosse muito maior do que um japonês baixinho. Senta sem se curvar ou responder as saudações da velha e da menina. As duas espalham a refeição na bancada - maior do que todas as outras no restaurante - sem que ele precise dizer uma só palavra. Ele ataca primeiro a garrafa de saquê, esquecendo todo o resto.

Um celular toca no bolso do terno, sendo atendido com uma rispidez anormal, sem mushi-mushi. Ele levanta sem pagar e avança em direção a porta, só parando para apontar os quatro dedos da mão direita para a menina, enquanto a metralha com gritos.