Diálogo Recursivo III - Déjà Vu
em 02.12.02
- Você quase não fala mais comigo. Antes, era tão falante. Tagarelava sem parar, sempre com um comentário, uma piada, uma provocação. Tem algo errado com a gente?
- Não. Só tenho menos a dizer. Perdi um pouco a vontade de falar.
- É?
- Não há mais nada que você não saiba.
- Há muita coisa que eu não sei. Não sei mais o que você está pensando, em quem está pensando. Ou como está pensando.
- Seria óbvio, se prestasse atenção.
- Prestar atenção no quê? Você não me diz nada! Passa o tempo todo naquele quarto, lendo. Ou escrevendo e rabiscando coisas para o filme. O máximo que me diz é que vai viajar não sei pra onde, que saiu tal dinheiro ou me mostra algo que fez. Nada sobe você!
- Desisti de falar de mim quando você começou a esquecer.
- Eu nunca esqueci nada do que você me disse.
- Esqueceu. As menores coisas. As que mostravam que você prestava atenção.
- E, em vez de me lembrar, você desiste de falar?!
- As coisas em si não eram importantes, mas era importante que você lembrasse.
- Às vezes você é insuportável! Se as coisas não eram importantes, por que é importante que eu lembre delas? Por que você não me fala mais nada sobre as coisas que são importantes, diabo?
- Porque eu não preciso falar para você sobre o importante, as coisas grandes. Eu falo delas o tempo todo. Penso nelas o tempo todo. Basta entrar no quarto, ver as orelhas dos livros. Prestar atenção no que estou fazendo.
- O que você faz não tem nada a ver com a gente. Aliás, não tem nada a ver com mais nada. É só um amontoado de idéias sem sentido, cenas pela metade, umas coisas que não se completam. Nada com nada! Cada vez mais chato, mais arrastado, mais distante de tudo, fechado em si.
- Eu só escrevo sobre nós dois. Antes você sabia disso.