Transparências
em 09.10.03
Quando eu era criança, não bem criança. Crianças não se ligam para sexo e meninos não prestam atenção nas meninas até elas estarem mais velhas e apaixonadas pelos meninos mais velhos, que tomam foras das meninas da sua idade e são obrigados a ficar com as meninas mais novas. Enfim.
No início da minha adolescência, eu não ligava para as meninas. Não é que eu fosse muito novo ou desligado delas ou bicha - naquele tempo a televisão não era igual a hoje para ensinar essas coisas para as crianças - eu só não me interessava pelas meninas. Até tinha vontade de ver como elas eram debaixo das roupas, mas depois de ver umas revistas de sacanagem que um tio meu me deu eu perdi a vontade. Nem peito direito elas tinham. Elas, as mulheres que eu conhecia, pareciam não ter nenhum mistério. Eram como a minha mãe. Um dia eu ia ter que me casar com uma e fazer umas coisas para garantir a roupa lavada e a comida na mesa. Mas elas não tinham graça, sabe.
Eu gostava mesmo é de saber como as coisas eram por dentro. Adorava desmontar os brinquedos, abrir a televisão, essas coisas de moleque. A maior parte do tempo eu passava escondido numa oficina perto de casa, ajudando o dono, o seu Pituca com uns carros. Eu ajudava para poder mexer neles. Me sentia todo importante, como se alguém tivesse me contando um segredo bem grande. Até hoje meio que me sinto assim quando mexo num carro. Claro que me contam segredos bem maiores, mas até encherem os carros dessas peças de computador eu mesmo arrumava os meus. Deixava ele parado durante a semana e pegava o da mulher ou do menino, esperando chegar o fim de semana para arrumar. Era uma das coisas que eu queria fazer com meu menino, mas ele nunca gostou.
Pois eu estava dizendo que não ligava para as meninas, achava perda de tempo. Era mais de desmontar um relógio que ficar correndo atrás de menina maluca, cheia de frescura e sem graça. Até o dia que me machuquei na oficina pensava assim.
Eu estava tirando a roda de um carro e tinha um parafuso muito difícil. Eu não era um desses mopleques criados por vó, mas só tinha treze anos, ainda era meio mirrado, sabe? Não queria pedir ajuda - adorava quando o seu Pituca me dava os parabéns porque tinha feito algo difícil para alguém do meu tamanho - daí inventei de subir naquela chave para girar o parafuso com meu peso. Já tinha feito aquilo umas vezes, numa o Pituca até me deu um cascudo porque eu ia entortar a chave dele, por isso tirei todos os outros parafusos antes de tirar aquele. Sabia que ele ia ter que dar uma saidinha, a menina que ele comia sem a patroa saber tinha passado por lá, daí esperei. Mal ele saiu da oficina, pulei em cima da chave, para girar com meu peso. Só que o seu Pituca voltou para pegar um negócio, eu me assustei e enfiei a chave na minha perna.
Era daquelas chaves em cruz, com uma ponta de chave de fenda. Pois foi bem essa que enfiei na perna. E entrou fundo, na parte de baixo da perna. Fiquei meio preso por ela, e a perna foi abrindo. Até em cima, perto do joelho, um puta rasgo. Fundo, sangrando pra caralho. O Pituca viu, me xingou, me colocou no carro e me levou para o hospital.
Não me lembro de muita coisa. Lembro de esperar um tempo e da minha mãe chegando e fazendo escândalo ? igualzinho a minha mulher faz com os meninos - falando pra diabo e eu sem ouvir nada, com a perna doendo, sem querer chorar na frente do Pituca de novo - já tinha chorado que chega no carro. Mas lembro de uma menina que estava com o omoplata partido. Lembro que ela era maior que eu e que esperava com muita dignidade, sentada direito e tudo, com uma tipóia de pano de toalha.
A menina entrou antes de mim e eu xingando baixinho, pensando que eu devia ir antes - eu, não ela, estava sangrando. Mas ele foi para uma sala, e voltou rapidinho, mesmo para quem estava com a perna sangrando pra caralho.
O médico me chamou, a mãe e o Pituca me apoiaram até a sala e o médico olhou a perna, limpou, deu anestesia e começou a costurar, falando comigo calmo, sem a gritaria da mãe. Enquanto ele me costurava, chegou um sujeito com um negócio na mão que eu nunca tinha visto antes e colocou no meu lado na maca. Tipo uma foto, só que grande. Fiquei espiando e o médico percebeu. Ele perguntou se eu nunca tinha visto um raio-x antes e eu disse que nem tinha visto aquele ainda. Minha mãe disse para eu deixar de ser grosso, se eu não estivesse na frente do doutor eu ia ver. O médico já estava mais cheio que eu e pediu pra mãe e pro seu Pituca saírem da sala, que ele queria conversar comigo.
Ele fez umas perguntas e disse que ia ter que tomar umas injeções. Daí ele perguntou se eu queria ver o raio-x. Ele me explicou que era um jeito de ver os ossos, mostrou até a fratura, que mal dava para ver. Eu perguntei quem era e ele disse que era da menina na sala de espera.
Eu nunca tinha pensado no que a gente tinha por dentro. Muito menos que as meninas tinham algo por dentro, já que emperequitavam tanto o lado de fora. Fiquei fascinado e, quando saí da sala e o doutor chamou a menina - não lembro o nome dela, só lembro que ele falou bem alto, um nome estranho mas bonito - eu manquei mais devagar do que precisava, me coloquei na frente dela e encarei. Parei e me senti muito íntimo dela, que estava muito mais bonita do que quando entrei na sala. Até pensei em esbarrar nela, mas faltou coragem.
Depois daquele dia, quando melhorei e voltei para a escola, eu comecei a ver a graça das meninas. E até me aproximei de uma ou outra, as mais magrelas, onde dava para ver um ossinho aqui e outro ali. Nada melhor que sentir os ossos com meus dedos, perceber que elas tinham algo ali dentro. E era fácil. Elas protegiam era as carnes. A bunda, os seios eram proibidos, mas nunca vi uma menina dar um tapa na mão nos ombros.
De vez em quando eu ia no hospital, conversar com o médico e olhar uns raios-x. Os dos caras eram legais, mas eu conseguia saber logo quando era de uma mulher. Dava uma vontade de tocar, colocar as coisas no lugar com as mãos, rasgar a carne e encaixar os pedaços dos ossos. Saia dali cheio de energia, era meu filme de sacanagem, acho que por isso decidi ser médico.
Raio-x não era algo comum igual hoje. Se fosse, acho que ia ser segurança que era mais fácil. Mas era difícil, tinha que ser médico ou enfermeiro para ver raio-x. Ou técnico em raio-x, mas eu não sabia disso na época. Foi sorte, senão eu não tinha me esforçado para me formar.
Eu achava que meu negócio, minha tara, eram os ossos. Mas quando eu via uma mulher grávida - e osso é a última coisa que dá para ver numa mulher grávida - eu tinha a mesma vontade de tocar o que tinha dentro. Quando ouvi falar de ultra-som, resolvi que era nisso que eu ia me especializar. Diagnóstico por imagem.
Tem uns bestas que ficam pensando que ginecologista que tem sorte, que vê buceta o dia todo. Só que esquecem que quem vai no ginecologista não tá lá muito bem. E como os caras são visados. Se pegam um batendo uma entre as consultas, já foi o emprego.
Quem tem sorte sou eu. Quase tudo que eu faço - eu nem quase faço mais, ensino - fica o registro em vídeo ou papel. Ressonâncias, endoscopias, contrastes, ultra-som e o diabo. Eu posso levar para casa, ver quantas vezes eu quiser. Acho que nem passa pela cabeça dela porque eu faço isso, mas a verdade é que eu sou bom pra caralho e tenho sorte de misturar diversão e trabalho dum jeito invisível.
E o site não vai mal. Daqui a pouco vou tirar tanto nele quanto no hospital e na faculdade. Só fico esperando o dia em que uma dessas revistas vai escrever sobre o assunto e uma porrada de gente vai descobrir ficar de pau duro com a idéia.
Eu sei que tem mais gente esperando pelo segredo.